15 de outubro de 2012

Osman Lins- Pastoral



Sem aqueles óculos de vidro grosso, meu padrinho, morto, parece outro homem. É outro homem. Olhava-me por trás das lentes, dizendo coisas sobre minha mãe, quando me deu Canária de presente. O sermão exalava afronta e crueldade, saía devagar pelo nariz, seu andar também mas cauteloso e miúdo, andar de cágado. Sendo caso de morte, e eu afilhado, meu pai não viu outro jeito, senio trazer-me à cidade. Ali está, senta­do, a boca aberta, ouvindo os numerosos sinos de Goia­na, dobrando pelo compadre. Quando se distrai, fica de boca aberta; os olhos não repousam, sondam tudo com desconfiança. Estou ouvindo sua voz soante, embora esteja calado. Todas as horas da vida, sem cessar, escuto sua voz. Não é para ele, nem para meu padrinho, é para as seis mulheres de Goiana, estranhos bichos não existen­tes no sítio (duas sentadas no banco, o rosto sobre as mãos, a terceira de pé, ao sol, prendendo os cabelos, ou­tra de olhos no espaço, reclinada no sofá, sozinha, braços estendidos no espaldar, e duas desfolhando cravos sobre o morto, é para estas que eu desejaria ter seis olhos. Ali­çona é mulher? Usa vestido, é certo, semelhante às saias e blusas dessas moças. Mas é mulher? Banhando-se no rio, nua, lembra um tronco nodoso, cinza e verde, grosso, coberto de limo. Tem os cabelos pretos. Mesmo as­sim, vejo na sua cara de azinhavre, larga e retalhada de rugas, idades que me assustam. As dessas moças não fa­zem medo. Peles finas, mãos bem tratadas, os vestidos brancos ou estampados, as orelhas com brincos, os sapa­tos delgados. Como são bonitas! Poderiam talvez brincar comigo, rolar nas folhas, dormir na minha cama. Isto, que parece um coro de cigarras, seis cigarras cantando, é o perfume de minhas seis goianenses.
Aqui, ninguém me vê. Canária entrega-se, mansa, a to­dos os agrados. Tento morder, de olhos fechados, o fuso que ela tem na testa. Pensando no perfume das moças, afogo-me em seu cheiro de égua nova, ainda quente de sol. A claridade enreda-se nos troncos, o prazer vem su­bindo pelas pernas. Meu corpo aumenta, prolonga-se nos flancos brilhantes e dourados, na curva do espinhaço, na cabeça erguida. Nesta baixada, o sol desaparece antes. A luz esponjosa reflete-se nas nuvens, infiltra-se nos ramos das velhas laranjeiras sob as quais eu e a poldra es­tamos escondidos. Começou a noite e as primeiras estre­las logo poderão ser vistas entre as folhas. Por isto, e também por causa dos cabelos compridos, tapando-me as orelhas (passam-se meses, sem que ninguém se lembre de cortá-los), não posso ver meu perfil. Joaquim, bem longe, abate uma árvore; chegam a meus joelhos, amor­tecidos, os golpes de machado. Mais um dia, mais um dia para amadurecer Canária e conduzi-la ao cavalo que está de pé em algum pasto, cavalo de cactos, crinas de agave, rabo de carrapichos.

Nosso pai, o braço esquerdo morto, grita por Balduf­no, manda cortar meus cabelos. “Parece uma Verônica!” Tudo que lembre mulher o enraivece. “Raspa!” Balduí­no Gaudério é o filho mais novo da primeira esposa de meu pai, morta com vinte anos de casada. “Nunca ouvi, Baltasar, aquela criatura levantar a voz. Ia falar para que? Meu pai só exigia que ela fosse fiel e desse conta das obrigações. Mas na hora de morrer, ela deu um berro, um amém que assustou. Sua vida se foi naquele grito.” 
Meu pai não compreende por que Balduino Gaudério não cresceu; e só encontra para isto uma justificação: engui­çaram-no, passaram por cima dele, com más intenções, no tempo de menino. Parece haver, dentro de Gaudéno, homem para corpo maior: pesa quase o mesmo que Do­mingos ou Jerõnimo. Ë menos bruto que esses dois irmãos e o que parece ter-me um pouco de amizade, embora escondida, para evitar censuras. Pega a faca amola­da por Joaquim e me raspa a cabeça, sem dizer palavra. Também não falo. De pé, as mãos pendidas, submisso, deito-me no chão, observo a tosquia e até acho prazer no tratamento. É tão raro sentir contato de gente, mesmo grosseiro. Nem Aliçona, que é mulher, me afaga. Aliçona é mulher, Baltasar? Sim. Não, não é. Move-se no casario, malcontente, com ar de condenada, como se levasse o próprio peso às costas. Vasculha mal as telhas, varre co­mo cega, espana sem cuidado, lava em meia água os pra­tos da comida e nossa roupa. Pés descalços, calcanhares rachados, unhas carcomidas, ciciando sempre e rindo só, com ódio. Não é mulher. Por trás de Balduíno, miro meu pescoço, a nuca sem brilho. Nunca entendi por que sou feito de cipós trançados. Quantos anos terei? Baldufno, nossos irmãos Jerônimo e Domingos, meu pai e Joaquim, o parente afastado, que desapeou há perto de oito anos e se fez de casa, também perderam a noção de minha ida­de. Não sabem se me devem tratar como rapaz .ou crian­ça. Concordam, isto sim, em asseverar que me pareço muito (jamais dizem com quem), que haverei sempre de ser peso morto e que um dia, mesmo que não .queira, co­meterei infidelidades. É possível. Sou indolente e careço de músculos.
O candeeiro aceso, de cobre, no estrado de maçaran­duba modelado a enxó, onde comemos. Quando nos curvamos sobre os pratos de estanho, esmaltados de azul, parecemos sempre estar chorando: a mesa é baixa, quase altura de cama. Nosso pai se senta numa cabeceira, de frente para Joaquim. É o mais alto e branco de todos. Cabelos quase pretos, caindo na testa. O braço esquerdo esquecido não lhe quebrou a energia. A sua direita sen­tam-se Jerônimo e Domingos, os dois bem perto dos qua­renta anos e ainda sem mulher; à esquerda, com a incum­bência de cortar, quando é preciso, carne para o velho, Balduíno. Meu pai está voltado para mim. Olha-me, olhar divertido, enviesado. Todos os seus olhares, mesmo nas horas de cólera, parecem divertidos. Joaquim, mão estendida para a quartinha de barro, também me olha. Cara de terra, nenhum cabelo, sobrancelhas enormes e pêlos nas orelhas. Sua cabeça brilha à luz do candeeiro. Domingos fala de fora para dentro, ri sem necessidade. Leva à boca, na ponta da faca, grande pedaço de carne­-de-sol. Jerônimo, esquecendo o talher, ergueu as duas mãos e zune as acusações de costume contra mim. Seus olhos são azedos: sinto na língua, quando me observa, o gosto de limão. Eu e Balduíno estamos de cabeça baixa inclinados sobre os pratos azuis. As sombras dos que es­tão aos lados da mesa são maiores que as do pai e de Joa­quim, sentados mais longe do candeeiro. A sombra das mãos de Jerônimo, nas telhas enegrecidas, onde às vezes correm, afoitos, timbus de barriga alva, é quase invisível. Ponho as mãos no meu ombro e beijo com pesar minha cabeça raspada.
Espreito-me dormindo, os membros espalhados, estre­la de cinco pontas. Ouço, ao mesmo tempo, o cincerro da potranca na estrebaria e o som de seus cascos trotan­do no meu sonho. Ocupo, sozinho, este cômodo enorme, dantes camarinha de meus pais. O oratório preto já não tem imagens; do cravo com dois dedos de grossura, pre­gado na parede, no qual minha mãe, à noite, punha seu bisaco de jóias, pendem alguns arreios; existe a arca fe­chada, que jamais se abre, cujas quatro chaves decerto se perderam e onde talvez mofem sapatos e vestidos; no baú de madeira, pintado de vermelho e azul, guardo al­guns chifres, pedras, ossos de animais, chocalhos e as poucas moedas que Gaudério, com meses de intervalo, me oferece. Morta a primeira mulher o velho nada alte­rou para o segundo casamento. A cama de ferro, com las­tro de arame, é a mesma onde todos fomos paridos. Aí vão crescendo, noite e noite, sobre o colchão de rabugem e palha úmida, os cipós com que sou feito e que, embora cresçam depressa, crescem mais devagar do que Canária.
Nu, pernas mergulhadas na água turva, meio cabaço na mão, saio do barreiro, puxando pela corda a egüinha. Minha pele descamba para o baio; se comparada à potra cor de cobre, é clara como a lua. Eles gostam, Canária, de judiar comigo. Na ceia, ontem, fizeram outra coisa? Sou preguiçoso, de menos serventia que um cachorro, pois não ladro. Sendo cruel. Jerônimo diz saber coisas. Quando um cavalo não é bom de sela; quando um cão é capaz de morder de furto; que vê a crueldade em mim: sou o buraco, num rio atravessável a vau. Sorvedouro escondido. Domingos, rindo, mastigava-me em seus dentes sujos. O pai lançava-me olhares, mais duros que as palavras de Jerônimo, embora divertidos. Joaquim me julga peixe envenenado. Se eu pudesse, Canária, afogava um por um, até Balduíno, que não me defendeu. Fala­ram na mulher. Não no seu nome; não no que fez. Falaram sem falar. Não se conhece um bicho pelo rastro? Eu sou o rastro de um bicho roubado. Ou fugido. A boca na testa da poldra, no seu fuso molhado, vejo sobre os vales, OS montes, o sol do meio-dia como um galope de cem bodes brancos, todos com guizos nos cornos. Meu corpo é feito da mesma fibra maleável e rija com que se modelam os cavalos.
Só meu padrinho, até hoje, me falou como se fala a gente. Trouxe esta potrinha, Baltasar, para lhe servir de companhia. Sei o que é viver sozinho como você. Tam­bém mastiguei minhas areias, ora. porque ninguém sa­be. Está sentado debaixo desta sombra, em cima das raí­zes, chupando carambolas, os olhos parecendo lesmas co­ladas nos vidros. Voz arrastada e fanhosa, cheia de riscos maus. Admiro a bestinha e escolho para ela, na mesma hora, o nome de Canaria, enquanto me parecem distan­tes a ovelha de Aliçona e as cabras de Gaudério. Nenhum desses bichos, cuja docilidade aceito como dever de coisa possuída e cuja rebeldia me enfurece, terá jamais para mim a beleza e o valor de Canária. Não sei como você existe, Baltasar. Como sua mãe fez uma coisa dessa, aceitar casar-se com um jumento, eu não estando morto. E ter filho dele. Imagine que coisa, seu pai lavrando aque las doçuras. A gente faz coisas! E o pior é que você saiu a ela. Não pode lembrar-se; mas é te ver e ver a fugitiva Ah, se eu soubesse. E bem que podia imaginar. Mas faltou coragem, vivi sempre no medo. Tinha nada que ela fosse ou não minha comadre? Quem sabe onde anda! Aquele vira-mundo não era homem pra ela. Gostava de ouro, demais. Foi isso que viu: os ouros. Para mim, ela ia sem aqueles adereços, sem anéis, sem voltas. Feito um copo d’água.
Não falo, mas entendo. As palavras dele ficam em mim: ponta de faca amolada por Joaquim não asgravaria mais fundo numa tábua. Conheci essa figura de negro, de pé no copiar, enorme cruz no peito, de ouro e diaman­tes, pendendo de urna volta grossa? Não. Conheci estes sapatos, de couro negro, essas meias negras de algodão essas compridas mangas de vestido? Não. Ainda assim, vejo. Passou, em torno da cabeça, um véu de seda negro. À luz das estrelas, que brilham, quase sem pulsar, na sossegada noite de novembro, seu rosto flutua. É, em plena decisão, o último instante indeciso. Quebradas todas as condas, restava ainda esta, lassa — e que resiste. A casa está quieta, a aurora distante forma-se na noite.Estio dormindo os galos. Não muito longe, um cavalo branco, ajaezado, espera-a. O metal dos estribos, as five­las das correias e as tachas que enfeitam os arreios bri­lham menos que seu pêlo branco. Cavalo de vaga-lumes. O homem debruçado na sela, aguardando aquela mulher pálida, cuja idade é mais ou menos a mesma dos entea­dos Jerônimo e Domingos, e que acentua a própria pali­dez com suas blusas negras, de mangas frouxas, os brincos negros, as duas tranças negras amarradas com grandes laços negros. Sempre cheia de anéis, às vezes quatro num dedo, sempre de pulseiras, de trancelins no pescoço. Sua vida absorve, dessas muitas jóias, o único alimento; ou então ouro e pedras sugam suas forças, chupam seus os­sos, lhe bebem o sangue claro, O homem,já em cima da sela, dá-lhe uma única ordem. Só levar consigo seus te­souros, vindos com ela dos tempos de solteira. Vestidos, não. Sapatos, não. Nada que meu pai lhe tenha dado. Só teu corpo e a roupa do teu corpo, O menino também fi­ca.
O sol se põe, boca vermelha e olhos dardejantes. Tomba, amarelo, duro em seu orgulho, cercado de pena­chos cor de sangue. A poldra baia, eu sobre ela, cruza o entardecer, quatro cascos no vento, estendida a cauda na linha do espinhaço e as crinas voando mais alto que as orelhas, lançada como para sempre no galope que longe repercute. Como cresceu, em pouco mais de um ano! Quero ser assim, crescer depressa, ter esta força, para ga­lopar sobre meus irmãos, sobre Joaquim e sua cara de terra, sobre meu pai e sua autoridade, sair por este mun­do atrás de minha mie, ajoelhar-me a seus pés. Os roxos os dourados e os verdes das nuvens se trespassam, pia­nani três urubus sobre o sítio. No chão, sob as árvores, vejo as raízes, suas garras pretas. A grandeza do corpo sob o meu, distendido no ar, veloz, ao sol, entra em mim e gira no meu sangue. Me transformo em vinte, em mui­tos corrupios, verdes, roxos, dourados como as nuvens, girando sobre a égua em disparada.
De todos os quartos, só um tem janela: grande, folhas espessas, dobradiças duplas, pegadores de ferro. Cede o lastro da cama, quase em curva de rede, ao peso de meu corpo. Na janela aberta, vejo lua, estrelas, campo, cochei­ras, os movimentos das éguas mais velhas, ancas de Caná­ria, o tilintar do cincerro, cheiro de capim, de mijo apo­drecendo, õ garanhão na estrebaria menor. Vejo tudo. Quem me dera metade do corpo de um cavalo! Ou meta­de do corpo de Joaquim. Dorme com a faca atravessada nos peitos, seu tronco tem quase a largura da mesa, en­che a cabeceira oposta à regida por meu pai. Não fosse tão forte, estaria reduzido a empregado, recebendo or­dens e ordenado; em vez disso, determina coisas, toma resoluções. Foi ele que trouxe, para Canária, o cavalo ca­xito. Altaneira cabeça, olha-me desconfiado, crinas apara­das: na cocheira, sem companhia, réstias de sol nos ossos e no sangue, aguarda a manhã. Soltarão no pátio minha bestinha, ficarão à espera. Só em existir, ele a governara, será prisão mais segura que um cercado de estacas muito altas. Ei-la girando em torno do seu peito, de suas crinas, de seus cascos, sem poder fugir. Ele relincha, joga para o alto as patas dianteiras, rasga as entranhas da égua, com violência e glória.
—Pesa-me, na mão, a serra de cortar capim. Para bem -medir a potência e o fogo do cavalo, acendi o candeeiro de folha. Nas pernas, no vazio e perto das narinas, a luz fumacenta mostra os desenhos das veias. Seu pêlo escu­ro, nas curvas, reflete a chama. Ë um cavalo de ferro, co­berto de ferrugem. Primeiro, virando a cabeça, explorou-me com seu olho esquerdo, pulado, de brilho insuportá­vel. Tranqüilizado, baixou novamente a cabeça para o ca­pim fresco. Nesse corpo, escondido no ventre, fica o instrumento de minha humilhação. Experimento no polegar o gume da serra. Ninguém como Joaquim para amolar um áço, ele transforma em navalha as costas de uma faca. Curvei-me e agrado o cavalo na entreperna. Vai exibindo, aos poucos, seus possuídos, é como se abrisse o peito e expusesse, indefeso, a fonte do existir, então eu fecho os olhos, çerro o queixo, e com a mão toda, os braços de cipó mais tensos do que nunca, seguro o -membro rajado e decepo-o com a serra, num gesto curto. O senhor das éguas e pai de cem outros cavalos, que era um sol nos pastos, desfaz-se no seu sangue borbotante, os quartos arreados, como sucumbido ao peso da car­roça, ele que jamais em vida conheceu o jugo. Os ne­gros olhos brilhantes perdem a luz, reveste-os uma ca­mada de cinza, sua cabeça teima em ficar levantada, como outrora, nos campos sobre os quais durante anos ele desfraldou, como estandarte vermelho, sua força, mas não tarda repousar, inerte e desonrada, no chão. Agita-se a luz do candeeiro. Apagam-se, no couro do cavalo, os reflexos brilhantes, desaparecem as veias, os cascos trê­mulos fazem-se mais brancos. O sangue espumante é odoroso e negro.
Estendido à sombra de um pé de fruta-pio, as costas vergastadas, as marcas do chicote latejando, enxergo o mundo rubro e desequilibrado. Há uma árvore de folhas delicadas, que se destaca das outras: vigorosas, troncos retorcidos, frondes copiosas. Todas verdes, verde trans­parente, verde espesso, verde carregado, puro, impuro, verde. O céu é vermelho, vermelha é a terra. Cantam nambus. As chicotadas de Gaudério foram as menos for­tes — e as que doeram mais. O último a bater. Mesmo Joaquim entrou com a sua parte, quatro lambadas fir­mes, sem compasso. Na última, fingindo errar a pontaria, golpeou-me o pescoço. Não senti, depois, coragem de gritar. As chicotadas brilham, contemplo-as no meu lom­bo: brasas de angico. Se essas moças que velam meu pa­drinho me voassem agora pelas costas, com a verde canti­ga de cigarras!
Em cima de Canária, no topo do monte, vejo um pe­daço do ribeiro, embaixo, marrecos nadando e um novi­lho deitado, ruminando, crescendo na manhã. Foi ali. Se­cavam alguns vestidos de mulher, entre camisas de ho­mem e a colcha de retalhos. Aliçona é o tempo feito gente, um tempo rosnador; e súas roupas ninguém pode dizer que sejam de mulher. Por isto é que entra em nossa casa, bota os pratos na mesa, lava os panos, assa a carne-de-sol, faz o pirão de ovos. Porque não é mulher. Aqueles, porém, eram lindos vestidos, bem diferentes dos panos de Aliçona. Um de florões vermelhos, outro cor de mel, um vestido branco de menina, todos na cor ondulando. Parecia conversa de vestidos. Não conhe­ço o pessoal do sítio. A lavadeira, as donas dos vestidos e os donos das donas dos vestidos, serão almas? Ou nes­se lugar só habitam vestidos? O de florões dançava, con­tava alguma história divertida, o cor de mel sorria. As roupas de homens nada escutavam nem viam, mas o ves­tido branco me chamava. Ali estio, em número maior, todos imóveis, pendurados na corda, estendidos nas pe­dras à beira do riacho e nos galhos de duas groselheiras. Reconheço, entre ramagens, o vestido branco.
Dentro do milharal, entre folhas altas e as espigas in­chadas. Em duas, três semanas, serão quebradas pelas mãos de Jerônimo, Joaquim, Domingos, Balduíno Gau­dério. Meu pai, com gestos de dono, arrancará algumas. O milharal, esconderijo claro. De um lado, o crescente se levanta, quase lua cheia. O sol ainda não se pôs: descam­ba do outro lado, cabeça de orelhas cortadas, olhos cúm­plices e grande boca em chamas. O perfume do vestido branco. Nu, estendido no espinhaço da égua, em meu pescoço as crinas enroladas, entre as mãos o vestido ainda meio úmido, recebendo ao mesmo tempo o cheiro de Canária e o cheiro de sabão, do milharal e da terra, solu­ço. Quente o lombo da potra, áspero e escorregadio o pa­no do vestido desfia-se em meus dedos, canta uma cigar­ra, a moça do sofá me acaricia os pés, as nádegas, o dorso inteiriçado, vejo sol e lua, as duas claridades cruzando-se em meu peito, abro-me em dois, descubro por que choro, é o silêncio, regiram em mim os corrupios do go­zo tudo esqueço, tombo de borco. Ainda soluçando. A cara no vestido. Nas veredas do sangue ouço a voz, uma cantiga feliz, é um homem cantando, e este homem ca­minha para mim, coisa impossível, pois o homem sou eu na plena força dos anos. Canâria fareja a terra, na altura de meus rins.
O luar, entre as folhas da janela, ilumina o vestido, forrado no chão e ainda mais claro do que antes. Eu sen­tado à cama e de pé junto do oratório. Vem da estreba­ria, com claridade igual à do vestido, a campainha de Ca­nária. Da mesa, atroantes, chegam a voz de Joaquim e as risadas grossas de Domingos, Balduíno, miúdo, sempre à esquerda de nosso pai, finge sorrir; para ele, que tem os beiços curtos, isto é fácil. Domingos ri de verdade, levan­tou-se e olha para baixo, as mãos torpes abertas, afasta­das. Jerônimo pesa-o, com seus olhos azedos. Meu pai, branco e alto, o braço morto na mesa, como um pano, assoa o nariz e fixa a parede, atravessando gestos e risa­das. Falam de Canária, do cavalo morto, do que farão amanhã. Tentação de ir para o curral, beijar os flancos sombrios de Canária, mastigar-lhe as crinas. Não irei. Ca­nária, para mim, é posse que já não assumo. Seu dono é o cavalo, a meia hora de marcha, de que talam meu pai e meus irmãos.
Deitado no soalho, em cima do vestido, adormecido, nu, enluarado. Em torno de mim, os chifres, as pedras redondas, as moedas, os chocalhos sem badalos, os ossos de animais, as sombras do quarto, os arreios no cravo, o oratório vazio, o sossego da noite. Meus irmãos, meu pai, Joaquim, também bebem no sono a força com que cum­prirão, amanhã, seus trabalhos. Qual deles levará Caná­ria? Jerônimo? Domingos? Irão todos? Faço o cavalo: parado, alto, um morro, fogueiras nos olhos, peito imen­so, a cauda como um negro e espesso redemunho. Inva­dem o quarto cavalos galopantes, baios, brancos, negros, todos sangrentos, todos relinchando, perseguidos por ga­viões em fúria. O cavalo graúdo não se move.
Vou entre o frescor da noite e o calor da manhã. Não comi: tinha pressa, o estômago cerrado. A que horas ha­verão partido Jerônimo e Domingos? Cruzarei com eles no caminho? Por baixo desses vales, desses montes, dessas plantações, existem rios de fogo, nos quais o sol mergulha e onde as nuvens do nascente se banham toda a noite. Por isto vêm assim, vermelhas. O vermelho tinge o verde das folhagens, entre azuis e roxas nesta hora, os bois soltos no campo parecem esbraseados e as cabras são de vidro, atravessadas pela claridade. Também o can­to dos galos é vermelho. Não sei por que vou e preferia não ir, ou não chegar. Um vento impele-me, soprando à minha espalda, vento firme e quente. Amarro os tornoze­los — e porém, mesmo sem querer, vou mais rápido, sem­pre mais ligeiro, passada, meia passada, trote, vento no peito, gosto de manhã. Crescem minhas crinas verdes, minha cauda azul, e galopo com ôdio descendo esta la­deira, sou cavalo branco, árdego, cascos de pedra, dentes amolados. Na disparada, alteio a cabeça por sobre os ru­bros pastos, sobre as árvores, os montes e os pâssaros vo­ando, sobre as nuvens de fogo, o sol nascendo, e relincho com toda minha força.
Descubro, nos oito homens cujas sombras se alongam, emaranhadas na sombra da cerca e dos cavalos, expres­sões de inveja. Todos firmam a vista no centro do curral, como quem avalia bens alheios. Um, bem moço, os cabelos pretos sobre a testa. não consegue esconder, por trás do beiço mole e das pálpebras mortas, seu orgulho. Deve ser o dono do cavalo. Este é o centro de tudo. Belo ani­mal, e de cor bem rara. Preto, cauda e crina brancas e brilhantes, feito cabelos de milho ainda verde — e compridas, como desejaria fossem as minhas. Morde de leve a orelha esquerda de Canária. O barro está pisado, revolvido, cheio das marcas dos cascos. Há muito giram inquietos neste mesmo lugar, o macho em redor da fêmea, a fêmea em redor do macho, como que presa a um mourão, mas esquivando-se. Talvez hajam lutado. Agora, os dois imóveis, o cavalo morde a orelha de Canária. Entre os paus da cerca e as figuras dos homens debruçados, nenhum dos quais notou minha presença, ela me vê, se é que não está cega. Vai escapar ao domínio do cavalo, saltar a cerca, vir ao meu encontro? Rígida, e as patas traseiras afastadas, O couro de seus flancos estremece. Os homens, sempre ruidosos nessas horas, não dizem palavra. Longe, no sossego da manha, uma ovelha perdida bale sem cessar. A mulher de negro surge de repente, do outro lado da cerca e me aconselha: “Vai, Baltasar. Vale a pena”. Cato uma pedra no chão. Che­gam a meus joelhos, amortecidos, golpes de machado. Urna nuvem passou, o sol reaparece e clareia os animais, um vento inesperado faz ondularem as crinas do cavalo. Estouram em todas as árvores os gritos das cigarras.
Meu corpo fino, tecido com cipós, mas de aparência rija, torna-se frágil, peça de barro, que vai fazer-se em pe­daços nos cascos do cavalo. Os oito homens, por surpresa e por medo, se guardam de intervir. Seus rostos, menos que pesar, exprimem ira e incredulidade. Canária se afas­tou, cabeça alta e orelhas espetadas. Para mim, este breve instante é um relâmpago no corpo. Cheguei ainda a lan­çar minha pedra, sem alvo certo, a esmo. Os dentes do cavalo, as patas galopantes se abatem sobre mim como um feixe de raios, e as crinas brancas — nuvem — chameiam sob o sol.
Estirado na mesa, sem velas, dedos cruzados, a pele de raposa cobrindo-me as virilhas. Sentãdos e mudos, nos lugares de sempre, meu pai, Joaquim e meus irmãos ro­deiam-me. Imaginando que vão cear mais cedo (o cemi­tério é longe), Aliçona pôs a mesa: os pratos azuis, o candeeiro de cobre. Os poucos homens que vieram ao meu enterro, conversam fora, sem ânimo de entrar. Al­guns, apreensivos, olham para o céu. A tarde está nubla­da, fria. Antes que anoiteça, vai chover. Talvez com re­morso, talvez com alívio, pois nunca mais verá este seu filho, que em nada se parece com ele e que, todos os dias, fazia-o recordar a mulher que foi capaz de deitá-lo, meu pai contempla-me; os outros conservam a cabeça baixa. Da estrebaria vem o som do chocalho de Canária, ainda virgem de cavalo. Agora que estou nu e exposto, sem a permanente e soturna crispação com que me pro­tegia, é que vejo quanto era criança. Bicos do peito rom­budos, espáduas de menina. Jerônimo e Domingos me trouxeram cruzado em cima de Canária. Foi Balduíno Gaudério quem lavou meu corpo, quem tirou com bran­dura o sangue seco. Foi ele quem cingiu, às minhas virilhas, a pele de raposa, quem me cruzou as mãos e põs, entre meus dedos, um pendão de milho. Nunca mais cortará, a mandado do pai, os meus cabelos. De todos, é o único que chora, pranto mudo, quase sem so­luços. Tem inveja de mim, que nesta casa fria, fui capaz de amar e de morrer por isto. As mãos sob a mesa, pro­mete a si mesmo que haverá de ter uma mulher, que ha­verá de amá-la, que não será jamais como esses outros homens. 

Osman  Lins. Pastoral. In: Nove Novena. Ed. Melhoramentos, 1975

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