21 de dezembro de 2015

Seu amor por Ethel. Maria Judite de Carvalho


Para uma pessoa Etel era a mais bela e desejável das mulheres. Ela, porém, ignorava-o. Se soubesse, se tivesse ao menos uma leve suspeita daquilo que os olhos dele, demorando-se nos seus olhos, procuravam em silêncio revelar, às vezes esconder, outras insinuar a medo, se isso acontecesse, é natural que o fitasse com mais atenção, um pouco estupefata da ousadia, ou deixasse mesmo - voluntária e definitivamente – de o olhar e de falar com ele. Porque Vitorino, embora freqüentasse o último ano da escola comercial, nem por isso deixava de ser a “gente bem” da cidade, categoria essa em que Etel estava incluída, o filho do antigo cozinheiro do hotel. Como, porém, não sabia nem suspeitava do quer que fosse, Etel continuava a falar-lhe com um à vontade desolador – ou consolador- e mesmo a perguntar-lhe, com o seu ar afável, mas distante de rapariga bem nascida, de, como se dizia, ele sempre namorava a Fulaninha. Tantos outros baldes de água fria no coração amante de Vitorino, que fazia o possível por sorrir, mesmo amarelo, e responder qualquer coisa adequada, no mesmo tom inócuo e puramente lúdico.
Nos dias em que se travavam esses diálogos mais ou menos tontos, mas para ele tão preciosos, regressava sempre a casa calado e amargo após o entusiasmo, e com uma grande vontade de morrer. Eram os dias em que, fechado à chave no seu quarto modesto, passava em revista, estudando-lhe os prós e os contras – primeiro uns, depois os outros – todas as possibilidades de pôr termo àquela existência morna e sem interesse onde nunca haveria Etel: o gás, os pulsos cortados com uma lâmina, o tubo de Aspirina. Pensava também, minuciosamente, recitando a meia voz algumas frases mais significativas, na carta que escreveria a Etel nos últimos instantes, confessando-lhe o seu desesperado amor. Estacava sempre, porém, a boa distância do precipício. Tentava-o, afinal de contas, a vida ainda não vivida e o desejo de tornar a ver Etel, de falar novamente com ela, mesmo de assuntos superficiais e dolorosos, que nunca conduziriam a nada.
Em dias mais serenos, sobretudo quando não a encontrara, conseguia encarar quase friamente e com a objetividade necessária, o seu caso, e mesmo troçar um pouco de si próprio. Como podia Etel amá-lo? Pensava nesses dias. Era feio, pobre, de baixa condição. Nunca fora excepcional em coisa alguma, e na escola comercial ia passando à justa. Ora não havia na cidade, por mais que pensasse, ninguém que merecesse Etel. Se ela gostasse dele, não seria quem era. Por que não afastar então esse estúpido sonho que tomara posse do seu corpo e do seu coração? Isto pensava Vitorino em dias calmos. Mas depois encontrava-a, falava com ela, falavam-lhe dela e tudo voltava ao mesmo. A mãe olhava-o às vezes tristemente, quando o julgava distraído. Saberia do seu amor por Etel? Cria bem que não. No entanto, certa noite, beijou-o mais demoradamente quando foi ajeitar a roupa, e depois sentou-se mesmo na borda da cama e falou-lhe de certa rapariga que era boa e bonita, um encanto, mesmo talhada para ele.
- Mas eu não quero casar, mãe, disse Vitorino, encolhendo molemente os ombros.
- Todos se casam! Respondeu ela com um suspiro resignado, levantando-se. 
–Todos. Mais tarde ou mais cedo.
Foi no dia seguinte que ele soube que Etel fora vista na última semana com um engenheiro, de apelido inglês, recém-chegado à cidade, onde ocupava um cargo importante numa grande empresa. Sempre pensara que nunca teria Etel para si, mas não lhe ocorrera que outro homem a conquistasse com tanta facilidade. Do pé para a mão, por assim dizer, e de maneira tão ostensiva que as vizinhas afiaram as línguas e se puseram a utilizá-las com atividade excepcional. Foi um choque terrível para Vitorino. “Não pode ser”, dizia sozinho, de cabeça nas mãos e a soluçar. “Não pode ser”. Podia. E passou a encontrá-la por toda a parte, sozinha com o engenheiro, um homem alto e muito bem vestido que lhe pareceu odiosamente sedutor.
Agora que Etel estava perdida para ele e de certo modo para o pequeno mundo de que faziam parte, a idéia da morte deixou de obcecar Vitorino. Morrer tornara-se por assim dizer um ato gratuito. Ela era tão feliz que talvez nem desse pelo seu desaparecimento, e a carta que lhe escreveria, o mais que podia era provocar nela um “pobre rapaz!” dito ou pensado de passagem, à pressa. Ou talvez que, para se fazer valer, também era possível, a mostrasse ao noivo. Seria uma boa peça para o seu palmares de mulher. Poucas se podiam gabar de a possuir.
Vitorino viveu, portanto, mas desinteressadamente. Perdeu o ano. O padrinho, que lhe pagava os estudos – o pai morrera era ele pequeno – retirou-lhe a mesada. Que trabalhasse, não era mais do que os outros e a ele ninguém lhe havia pago um curso. Vitorino empregou=se. Entretanto, pessoas nasciam e morriam, pessoas amavam-se e esqueciam-se. Ele continuava a amar Etel.
-Por que não lho disseste enquanto era tempo? Perguntou-lhe a mãe, com quem mum dia , por fim, se abrira.
Ele não respondeu, porque isso era difícil e não sabia muito bem o que havia de responder. Dizer-lho? Ela, Vitorino? E sabia que uma razão houvera, e bem forte, para se ter calado. Não queria, no entanto, pensar nisso, receava tais pensamentos e as conclusões a que eles o podiam conduzir.
Um dia qualquer o engenheiro anunciou a sua partida, e os notáveis da cidade ofereceram-lhe um almoço de despedida com lagosta e discursos laudatórios. Depois, logo a seguir, começou a constar que o seu caso com Etel havia acabado e que pedira transferência de propósito para se ver livre dela. Humilhada, Etel não apareceu no primeiro baile da época e as outras raparigas sorriram discretamente. “Coitada!”, lamentavam-na sem piedade. “Já se via casada com o engenheiro. Ela que com toda pose não tem onde cair morta.”
- “O que se lhe havia de meter na cabeça”, comentaram as mães, esparramadas nas cadeiras de palhinha em volta do salão, e vestidas com os seus trajes domingueiros, a estalar pelas costuras porque todas elas tinham engordado ultimamente. Sentiam-se um pouco felizes com aquele fracasso sentimental, porque as filhas delas nunca tinham tido um pretendente tão categorizado. Uma das senhoras, a mãe da rapariga “que era mesmo talhada para ele”, chamou Vitorino de parte e perguntou-lhe em grande mistério se já sabia “da Etelvina”.

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