20 de janeiro de 2012

Comentário do conto No Retiro da Figueira, de Moacyr Scliar

No Retiro da Figueira, de Moacyr Scliar, temos um narrador-personagem que narra a malfadada experiência da sua família e de outras famílias que acalentaram o sonho de residirem em um condomínio fechado que tem o mesmo nome do título ao conto.
O medo da violência e a conseqüente insegurança das famílias que vivem nos grandes centros urbanos, encontram a solução na possibilidade de mudarem-se para um condomínio seguro, anunciado através de um prospecto publicitário. Tal prospecto, eivado de sedutoras descrições do espaço atiçou as expectativas de vida tranqüila: imagens de casas sólidas e bonitas, gramados, parques, pôneis, lago, campo de aviação, árvores, pássaros e um sistema de segurança desenvolvido com alta tecnologia. Um verdadeiro paraíso.
Vale salientar que este prospecto é de suma importância, na medida em que foi através dele que as pessoas tomaram conhecimento da existência do Retiro da Figueira e se interessam em ir até o seu endereço para conhecerem as instalações, com vistas a adquirirem, imediatamente, uma residência, pois em poucos dias todas as unidades estariam vendidas. Na chegada ao local, os candidatos a compradores e, em seguida, moradores do imóvel, comprovavam a fidelidade das imagens do prospecto, além de constatarem a gentileza e a solicitude dos guardas.
Instalaram-se na nova residência e, ao longo de mais de um mês, fruíram as maravilhas anunciadas no prospecto. Tudo estava sendo como o prometido. Todavia, a partir deste período de vida paradisíaca, começam as vicissitudes dos moradores do condomínio. A primeira decepção veio com a sirene de alarme disparando a tocar e os condôminos sendo mandados para o salão de festas, destinado para a concentração de todos em caso de emergência, onde durante quatro dias, ficaram confinados.
Ao cabo dos quatro dias, um avião pousou no campo de aviação e dele desceu um homem com uma maleta que entrega aos guardas. Em seguida, eles partem junto com o avião e com o dinheiro pago pelo resgate dos moradores seqüestrados do Retiro da Figueira. Assim, de felizes habitantes de um paraíso, todos passam, arbitrariamente, à condição de vítimas de uma armadilha e reféns, confirmando a desconfiança inicial do narrador. Assim, o que parecia a solução dos problemas vai se tornando o problema maior.
Os indícios que alimentariam, no desfecho, o grande acontecimento insólito gradativamente vão se manifestando: os prospectos foram enviados a pessoas selecionadas, as pessoas eram sempre sorridentes e prestativas. Até que no fim da narrativa as famílias não saem do condomínio, por ordens de segurança. Só então, eles descobrem que caíram numa armadilha, foram seqüestrados e estão presos no Retiro da Figueira que, por ironia da sorte, proporcionou a todos exatamente o que tanto temiam no grande centro urbano em que viviam.
“Nunca mais vimos o chefe e seus homens. Mas estou certo que estão gozando o dinheiro pago pelo nosso resgate. Uma quantia suficiente para construir dez condomínios iguais aos nosso – que eu, diga-se de passagem, sempre achei que era bom demais.

___________________________
Zenóbia Collares Moreira Cunha

6 de janeiro de 2012

Clarice Lispector: A Bela e a Fera ou A Ferida Grande Demais.

Bem, então saiu do salão de beleza pelo elevador do Copacabana Palace Hotel. O chofer ñ estava lá. Olhou o relógio: eram quatro horas da tarde. E de repente lembrou-se: tinha dito a ‘seu’ José para vir buscá-la às cinco, ñ calculando que não faria as unhas dos pés e das mãos, só massagem. Que devia fazer ? Tomar um táxi? Mas tinha consigo uma nota de quinhentos cruzeiros e o homem do táxi não teria troco. Trouxera dinheiro porque o marido lhe dissera q nunca se deve andar sem nenhum dinheiro. Ocorreu-lhe voltar ao salão de beleza e pedir dinheiro. Mas – mas era uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. Assim achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua – ao vento que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última vez que estava sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela – com outros, e nesses outros ela se refletia e os outros se refletiam nela. Nada era – era puro, pensou sem se entender.
Quando se viu no espelho – a pele trigueira pelos banhos de sol fazia ressaltar as flores douradas perto do rosto nos cabelos negros -, conteve-se para ñ exclamar um ‘ah!’ – pois ela era cinquenta milhões de unidades de gente linda. Nunca houve – em todo o passado do mundo – alguém q fosse como ela. E depois, em três trilhões de trilhões de ano – ñ haveria uma moça exatamente como ela.
‘Eu sou uma chama acesa! E rebrilho e rebrilho toda essa escuridão!’
Este momento era único – e ela teria durante toda a vida milhares de momentos únicos. Até suou frio na testa, por tanto lhe ser dado e por ela avidamente tomado.
‘A beleza pode levar à espécie de loucura q é a paixão.’ Pensou: ‘estou casada, tenho três filhos, estou segura.’
Ela tinha um nome a preservar: era Carla de Sousa e Santos. Eram importantes o ‘de’ e o ‘e’: marcavam classe e quatrocentos anos de carioca. Vivia nas manadas de mulheres e homens q, sim, q ‘podiam’. Podiam o q? Ora, simplesmente podiam. E ainda por cima, viscosos pois q o ‘podia’ deles era bem oleado nas máquinas q corriam sem barulho de metal ferrugento. Ela, q era uma potência. Uma geração de energia elétrica. Ela, q para descansar usava os vinhedos do seu sítio. Possuía tradições podres, mas de pé. E como ñ havia nenhum novo critério para sustentar as vagas e grandes esperanças, a pesada tradição ainda vigorava. Tradição de quê? De nada, se se quisesse apurar. Tinha a seu favor apenas o fato de q os habitantes tinham uma longa linhagem atrás de si, o q, apesar de plebéia, bastava para lhes dar uma certa pose de dignidade.

[LEIA MAIS, clicando na frase abaixo]

Comentário do conto A Bela e a Fera ou A Ferida Grande Demais.


O conto de Clarice trata da descoberta da pobreza por essa mulher confinada e protegida por um bom negócio matrimonial, mas reduzida a mecânicos atos quotidianos de auto-anulação, infeliz e culpada. A descoberta da pobreza dá-se junto com a autodescoberta como consumidora e parasita social, o que, de modo fulminante, desvenda o sem sentido da sua vida e da vida dos homens numa cidade grande que expõe talvez mais duramente os contrastes de uma sociedade injusta. O conto em que isso está mais visível é um conto inacabado mas que, independente da forma final que iriam ter seus fragmentos, já como Clarice o deixou, revela talvez por isso mesmo, porque ainda não arranjado em obra, essa vertente temática que, a partir daí , podemos reconhecer, meio disfarçada, em outros momentos dos contos e, mesmo, dos romances. Trata-se do conto póstumo A Bela e a Fera.
A bela, Carla de Souza e Santos, "quatrocentos anos de carioca", sai do espaço defendido do cabeleireiro chic do Copacabana Palace Hotel aonde fora protegida em seu carro oleado, que corria "sem barulho de metal ferrugento", conduzido por chofer particular. Com ele deveria voltar diretamente à casa para, depois, dirigir-se a outro espaço defendido - o de uma festa grã-fina. O conto, narrado por fragmentos aparentemente desconexos, nos deixa entrever que, na vida da jovem senhora que o casamento fizera mudar de classe, a cidade do Rio de Janeiro é outra. É uma espécie de cidade-fortaleza onde habitam os viçosos, os que podem tudo, até mesmo viver uma vida inteira sem dar-se conta da existência da cidade real, em que trabalhadores convivem lado a lado com marginais e mendigos.
Assim seria a vida de Carla, se não tivesse havido um imprevisto: o desencontro com o chofer, por ela ter saído do salão de beleza antes da hora combinada, agravado pelo fato de não contar com dinheiro trocado para o táxi. Essas são, aliás, as razões pretensamente objetivas que Carla se dá para subitamente sair porta afora da sua cidade defendida e descobrir a outra, a que começa na avenida Copacabana, onde há "pessoas de toda espécie". Mas o texto sugere também que essa saída é uma espécie de busca, de reencontro consigo mesma pelo encontro do outro de classe. Podendo "voltar ao salão de beleza e pedir dinheiro", desiste, porque a tentação da rua foi mais forte: "era uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. Assim achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua - ao vento que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última vez que estivera sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela - com outros - refletia e os outros refletiam-se nela. Nada era... era puro, pensou sem se entender". Quando Carla sai à rua, o olhar míope da mulher confinada de que nos falava Gilda de Mello e Souza quando da publicação de A maçã no escuro, descortina visões e pensamentos inusitados, fazendo-nos enxergar e ouvir o mundo que berra pela boca desdentada de um mendigo, como berrava pela boca do cego mascando chiclete, em Amor.
A visão do mendigo que vive de uma ferida na perna confronta Carla consigo mesma e com a sua própria ferida na alma: a alienação da mulher que se vendeu: Agora entendia que se casara da primeira vez e estava em leilão: quem dá mais? quem dá mais? (...). Então está vendida. Sim, casara-se pela primeira vez com o homem que "dava mais". (...) Vendera-se. E o segundo marido? Seu casamento (está) findando, ele com duas amantes fora a mulher e a mulher suportava tudo porque um rompimento seria um escândalo: seu nome era por demais citado nas colunas sociais. (...) Aliás, ela aceitara este segundo porque lhe dava grande prestígio. Vendera-se às colunas sociais? Sim. Descobrira isso agora. Descobrir isso é descobrir também que não se é uma self-made woman pelo simples fato de estar casada com um self-made man.
O casamento por dinheiro apagara tudo isso, mas apagara também uma parte dela mesma que o encontro com o mendigo na Avenida Copacabana ameaça trazer de volta com força e perigosamente. A alienação da mulher rica se expressa na festa permanente, sem nem ter o que festejar. E, na festa, os homens falam de negócios e as mulheres exibem a beleza fabricada a peso de ouro nos salões da Avenida Atlântica. Essa alienação é simétrica à do mendigo, expressa na cachaça que o ajuda a suportar a quotidiana exibição da sua mercadoria: a ferida na perna de que sobrevive. Festa e cachaça, obsessões respectivas em que um e outro costumam afogar uma falta comum - a falta de amor - e a pré-ciência de um destinno, apesar de tudo também comum: o da morte certa. Tudo isso é explicitado por este conto ainda de discurso transparente, talvez porque inacabado, anterior ao trabalho de polimento e de despojamento, das máscaras e dos mistérios de Clarice em suas versões finais.
______________________________________
Resumo da análise do conto, realizada por Ligia Chiappini, no estudo intitulado: “Mulheres. Galinhas e Mendigos: Clarice Lispector, contos em confronto.”