23 de outubro de 2010

Comentário do conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa.

 A terceira margem do rio, um dos mais extraordinários contos de Guimarães Rosa, narra a história de um homem que se evade de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, lugar em que, dentro de uma canoa, flutua “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”.
Porque foge aos padrões de comportamento tidos como normais pela sociedade, o homem passa a ser considerado como um desequilibrado que age sob o comando de sua loucura. Todavia, a explicação para tão insólita opção de viver apartado das pessoas da própria família, vagando pelo rio sem destino certo, pode ser outra bem diferente da loucura.
Ora bem, atentemos para o título do conto – A terceira margem do rio – ele envolve inquietante mistério, assim sendo, o seu significado tem que ser buscado na própria narrativa, pois é evidente que o autor tinha uma intencionalidade precisa quando o escolheu. Considerando que um rio só tem duas margens, a busca de uma terceira margem pelo homem poderá ter um significado metafísico e, a partir desta possibilidade, a viagem que, no plano material, seria sem destino e sem sentido, na verdade tem uma rota que vai muito além do mero passeio, do mero vagar sem rumo, na medida em que seu objetivo transcende a materialidade.
O homem, na verdade, foge de uma vida apagada, medíocre e sem sentido, em busca de respostas, de ordem metafísica e existencial, que não encontrou nas limitações e na superficialidade da visão do senso comum.A terceira margem representa o que é subjetivo no sujeito e, portanto, é invisível para os olhos, é o que não pode ser tocado, o que nos é desconhecido, mas que se sabe ter existência no interior de cada um ou no plano da transcendência. Assim, ao partir em busca da terceira margem do rio, o homem vai à procura do que desconhece em seu interior, em seu mundo subjetivo, na ânsia de entendimento dos mistérios do espírito, do sem sentido da vida, do que não compreende em sua existência.
É em busca de repostas para essas questões e da conseqüente completude que elas lhe proporcionariam que ele se mantém anos a fio no vai e vem meditativo pelo rio, na mais absoluta incomunicabilidade com as pessoas e com a realidade material.O filho do homem e também o narrador testemunhal da história é o único familiar que nunca se afasta do rio, ansioso e preocupado.
Vale lembrar que, quando criança, ele queria partir na companhia do pai. Este o impediu. Depois de adulto, já enriquecido com a sabedoria própria da meia idade, começou a perceber as razões que motivaram a busca do pai e resolveu fazer alguma coisa para o libertar o pai, tomando o seu lugar no barco. Chegando-se à margem do rio, diz que quer substituí-lo. Este é o único momento em que o velho esboça um gesto de aproximação, remando em direção à margem, para encontrar o filho. No entanto, ao ver a figura esquálida do pai, com o corpo mal coberto com as roupas em trapos, barba e cabelos crescidos, os pelos e a pele enegrecidos pelo sol, o narrador fica perplexo e com enorme medo da imagem física decadente e horrenda do pai, que parecia vir de uma outra realidade, além da vida. Então foge, “por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado”.
Em conseqüência desse seu ato de covardia, condenou-se a uma existência medíocre e apagada, marcada pelos males da velhice, pelo cansaço e pelo sentimento de culpa por ter voltado as costas ao pai: “E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: "e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.”