23 de outubro de 2010

O Retrato de Mônica, conto de Sophia de Mello Breyner Andresen

Mônica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, colecionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstrata, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mônica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstrata. Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mônica trabalha de sol a sol. De fato, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mônica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa o cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.Isto obriga Mônica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distração pode causar morte do artista». Mônica nunca tem uma distração. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mônica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é ótima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mônica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exatamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mônica é sólido e grande. Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mônica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mônica é um pobre diabo que Mônica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mônica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mônica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante. É por isso que Mônica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mônica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum. E por isso Mônica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve. Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mônica.
Há vários meses que não vejo Mônica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mônica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto. Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor. E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mônica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.

(Contos Exemplares. Porto, Figueirinhas, 1996.).


COMENTÁRIO DO TEXTO

Sophia de Mello Breyner Andresen foi uma das maiores expressões da poesia em Portugal. Escreveu apenas um livro de contos para adultos – Contos Exemplares - que representa o que há de melhor no gênero. Pertencente à aristocracia, a autora nunca se omitiu de tecer críticas a sua classe social, da mesma forma que jamais endossou o calculismo ou a piedade caritativa hipócrita em relação aos oprimidos. Estas atitudes são sarcasticamente retratadas no conto, no qual Sophia esbanja no refinamento da ironia, especialmente em relação à personagem principal Mônica.
O que percebemos em O Retrato de Mônica é a desmistificação da ideologia dominante, feita através do recurso a signos metafóricos, como as figuras do “homem importantíssimo” (marido de Mônica) e do “Príncipe deste Mundo” (símbolo do ditador). Ambos metaforizando a idéia de poder, de posse e de superioridade. Por sua vez, Mônica é descrita ironicamente do contrário do que realmente ela é, ou seja: como exemplo de mulher perfeita, extremamente séria e detentora de grande sucesso no meio social por onde circula. Todavia, essas virtudes assumem conotações negativas no discurso de Sophia. A autora usa Mônica para traçar o perfil abjeto da camada social dominante.Por meio da alegoria, a narradora faz referência a uma mulher que condensa em si as qualidades e os defeitos da classe social a qual ela pertence. É através da alusão à prolongada conversa de Mônica , “com grande intimidade," com o Príncipe do Mundo que é apontado o perfeito entendimento e a cumplicidade entre a classe dominante e o ditador. Mônica simboliza uma camada social que foi o maior apoio ao poder ditatorial. Claro que a ironia está ao serviço da intencionalidade moralizante do conto. Portugal viveu quase 50 anos de ditadura e a autora, pertencendo à nata social, deve ter testemunhado situações que lhe inspiraram o conto.