29 de novembro de 2011

Sophia de Mello B. Andresen : A Viagem.

 A estrada ia entre campos e ao longe, às vezes, viam-se serras. Era o princípio de Setembro e a manhã estendia-se através da terra, vasta de luz e plenitude. Todas as coisas pareciam acesas. E, dentro do carro que os levava, a mulher disse a homem:
- É o meio da vida.
Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse. Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram.
- Devemos estar a chegar - disse o homem. E continuaram.
Árvores, campos, casas, pontes, serras, rios, fugiam para trás, escorregavam para longe. A mulher olhou inquieta em sua volta e disse:
- Devemos estar enganados. Devemos ter vindo por um caminho errado.
- Deve ter sido na encruzilhada - disse o homem, parando o carro. - Virámos para o Poente, devíamos ter virado para o Nascente. Agora temos de voltar até à encruzilhada. A mulher inclinou a cabeça para trás e viu quanto o Sol já subira no céu e como as coisas estavam a perder devagar a sua sombra. Viu também que o orvalho já secara nas ervas da beira da estrada.
- Vamos:- disse ela.
O homem virou o volante, o carro deu meia volta na estrada e voltaram para trás. A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabeça nas costas do banco e pôs-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso.

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Comentário do conto "A Viagem".


 “A Viagem” é, incontestavelmente, um das narrativas mais sugestivas e sedutoras do livro Contos Exemplares, de Sophia de Melo Breyner Andresen. Configurando-se como uma alegoria da vida, em que a trajetória existencial do homem equivaleria a uma viagem sem regresso, ao longo da qual as coisas vão ficando para trás, tudo desaparece e tudo se vai perdendo, sem que possamos impedir ou recuperar, pois não se pode vivenciar duas vezes as mesmas sensações, emoções e deleites, da mesma forma que nos é vedado passar duas vezes, da mesma forma, pelos lugares do vivido.
Sob a influência da passagem do tempo, tudo se move, se transforma, os seres humanos passam por um processo de mutação irreversível e cruel que termina com a morte.
Ao longo do próprio texto, podem-se assinalar vários indicativos de grande importância para a compreensão e captação do que a autora deseja comunicar (exemplificar). Senão vejamos: os protagonistas são personagens signos, que não possuem um nome próprio a distingui-los, ou seja, são simplesmente um homem qualquer e uma mulher qualquer, representando todo o ser humano.



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4 de novembro de 2011

Machado de Assis: O Enfermeiro.


PARECE-LHE ENTÃO que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado;
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.
Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo, — quero dizer, copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava, delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao coronel
Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me, aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel.
Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dous olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dous eram até gatunos!

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Comentário do conto O Enfermeiro, de Machado de Assis.

Pertence à "segunda fase" – a fase realista - do escritor, esse conto figura, sem sombra de dúvidas, entre os melhores do autor e faz parte da coletânea Várias Histórias, publicada em 1896
O Enfermeiro é um típico conto machadiano, pejado de humanidade e de ironia do narrador homodiegético (narrador e personagem) nomeado –Procópio - que se mantém distanciado dos acontecimentos narrados, observando com a impiedosa lupa da crítica as imperfeições e mazelas das personagens. Estas são, como sempre, tipos representativos de determinado grupo social ou profissional, cuja condição moral é analisada com crua objetividade.
O narrador-personagem - Procópio - relata a sua própria história ocorrida na época em que, ainda jovem, tinha ido trabalhar como enfermeiro para um riquíssimo e rabugentíssimo senhor de nome Felisberto, que de tão exacerbadamente insuportável tornara impossível a vida dos enfermeiros anteriores, levando todos a pedirem demissão do espinhoso trabalho. Por causa desses sucessivos insucessos, o narrador é considerado pelo padre da pequena cidade do interior em que estão uma espécie de salvador, tratado a pão de ló, já que representava a última esperança.
De início o enfermeiro trata o moribundo com a maior paciência, o melhor dentre os que o antecederam, o que resulta na conquista da simpatia do velho. Todavia, a harmonia entre os dois teve curta duração: o doente enfadou-se de tanta paz e calmaria, começando a dar rédeas soltas ao seu medonho e maquiavélico gênio. Passou, então, a tratar rispidamente o enfermeiro.
Este suportou a sistemática grosseria do doente até que sua paciência atingiu seu limite, levando-o a pedir demissão. Para espanto do enfermeiro, o paciente abrandou, pediu-lhe desculpa e que tivesse tolerância para o seu mau gênio. Todavia, a paz durou pouco tempo, logo a torturante irritabilidade e grosseria retomaram, chegando ao auge no momento em que o velho jogou uma vasilha d’água na cabeça do enfermeiro. Este, enlouquecido pela dor, perdeu o controle e agrediu o doente, matando-o por esganamento.
Este é o ponto alto da narrativa, pois introduz a parte mais interessante da mesma, ou seja: assinala o momento no qual o narrador tomou consciência do ato extremo praticado e entra em uma crise de remorso torturante. Daí, sua preocupação passa a ser a construção de justificativas em sua mente que pudesse amenizar o excruciante peso que massacrava a sua consciência e, ao mesmo tempo, que conseguisse fazê-lo enganar a si mesmo, livrando-o do sentimento de culpa.
Acontece que o velho tinha um aneurisma em estágio avançadíssimo que iria lhe causar o óbito a qualquer momento. Todavia tal desculpa seria a salvação de sua consciência se um fato surpreendente, com intenso sabor de ironia, não tivesse ocorrido e provocado um sério transtorno em sua já delicada situação: o velho, em seu testamento, fizera do enfermeiro o único herdeiro. Tal revelação cai como uma bomba na mente culpada do protagonista, resultando em um grave conflito interior. Para livrar-se dos demônios do remorso ele cogita em doar a fortuna, depois passa a elogiar o velho insuportável em público, a contar histórias engraçadas sobre ele.
Com tal convicção e empenho começou a acreditar em sua inocência, que findou ilusoriamente a acreditando nela extirpando, assim, de sua consciência qualquer resquício de remorso. Nem lhe passou mais pela cabeça doar a herança. Quando muito, fez algumas doações, como forma de “arejar” a consciência.
No conto em questão, o homem é mais uma vez retratado por Machado como um ser corrompido, egoísta, ingrato, oportunista e preso a pulsões malignas. Tais características estão bem presentes tanto em Procópio quanto no Coronel Felisberto.
Note-se bem que ocorre uma mudança radical nos perfis psicológicos das duas personagens. O enfermeiro passa de vítima da estupidez do Coronel a seu assassinato. O Coronel, de velho endiabrado, agressivo e ingrato passa a ser visto como um homem generoso e dotado de um raro sentimento de gratidão, ao deixar para o seu enfermeiro toda a sua fortuna. Assim, ocorre uma evidente subversão de qualquer ação maniqueísta que destrói a crença de que existem dois tipos definidos de pessoas: as boas e as ruins, mostrando que ninguém é tão bom ou tão mau quanto possa aparentar, sendo possível a coexistência da bondade e da maldade numa mesma pessoa.
Machado de Assis mostrou, com a habilidade que lhe é peculiar, o perene conflito interior do ser humano, sempre dividido entre dois titãs em luta em seu interior: o bem e o mal.

Zenóbia Collares Moreira