10 de junho de 2012

Lygia Fagundes Telles. conto "Antes do Baile Verde".


O rancho azul e branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís XV e sua porta-estandarte de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro do bumbo fez uma profunda reverência diante das duas mulheres debruçadas na janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo rodar a capa encharcada de suor.
-Ele gostou de você- disse a jovem voltando-se para a mulher que ainda aplaudia. -O cumprimento foi na sua direção, viu que chique?
A preta deu uma risadinha.
-Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele começa a encher a caveira e pronto, não sai mais nada.
A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa-de-cabeceira. O quarto estava resolvido como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e gavetas.
- Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo...Tenha paciência, mas você vai me ajudar um pouquinho.
- Mas você ainda não acabou?
Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas também verdes.
- Acabei o quê, falta pregar tudo issi ainda, olha aí... Fui inventar um raio de pierrete dificílima!
A preta aproximou-se, alisando -se,com as mãos o quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha trazia um crisântemo de papel-crepom vermelho. Sentou-se ao lado da moça.
O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.
- Tem tempo, sossega - atalhou a jovem.Afastou os cabelos que lhe caíam nos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. - Não sei como fui me atrasar desse jeito.
- Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!
- E quem está dizendo que você vai perder?
A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e delicadamente tocou com ela cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com pequenos movimentos circulares.
- Mas tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote...
- Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a coisa pela metade, vê se entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?... Que tal?
Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde você está parecendo uma alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito.
Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mão na face afogueada.

Comentário do conto "Antes do Baile Verde", de Lygia Fagundes Telles

Em “Antes do baile verde”, Lygia Fagundes Telles traça o perfil moral da ingratidão, do egoísmo e da mesquinharia humana. O narrador não é muito pródigo em informações, limitando-se ao estritamente essencial. Ao fim e ao cabo, a narrativa ocupa apenas o espaço temporal de um dia, e desenrola-se no interior de um apartamento, no qual três pessoas convivem: um idoso enfermo, sua filha (Tatisa) e uma criada (Lu). A filha – Tatisa – é uma mulher frívola, superficial e egoísta que só pensa em si mesma. Sem a mínima capacidade de assumir seus erros, ela transfere sua culpa, que se insinua e a incomoda, para outras pessoas ou circunstâncias, numa evidente inquietação para justificar seus atos não só para a criada como para si mesma.

“Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem disse que não podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta.”

Mesmo diante da cena em que vê uma lágrima descendo na face do moribundo Tatisa reluta em desistir de sair para o baile. Na verdade, Tatisa sente-se invadida por dois sentimentos antagônicos: a angústia causada pelo sentimento de culpa (relacionada ao seu descaso com o pai) e o receio (da reação que teria o namorado caso ela se atrasasse). Todavia, entre aban-donar o pai moribundo e aborrecer o namorado, a insensível filha não tem dúvidas em prefe-rir não provocar desentendimento com este a dar assistência ao pai.

O conto não tem um desfecho. Trata-se de uma narrativa aberta, ou seja, sem um desenlace criado pela autora que, como tal, permite ao leitor tornar-se um participante na criação lite-rária, elaborando o final de acordo com o seu próprio ponto de vista.