28 de julho de 2016

Canibais, conto de Moacyr Scliar


Em 1950, duas moças sobrevoaram os desolados altiplanos da Bolívia. O avião, um Piper, era pilotado por Bárbara; bela mulher, alta e loira, casada com um rico fazendeiro de Mato Grosso. Sua companheira, Angelina, apresentava-se como uma criatura esguia e escura, de grandes olhos assustados. As duas eram irmãs de criação.
O sol declinava no horizonte, quando o avião teve uma pane. Manobrando desesperadamente, Bárbara conseguiu fazer uma aterrissagem forçada num platô. O avião, porém, ficou completamente destruído, e as duas mulheres encontravam-se, completamente sós, a milhares de quilômetros da vila mais próxima. Felizmente (e talvez prevendo esta eventualidade), Bárbara trazia consigo um grande baú, contendo os mais diversos víveres: rum Bacardi, anchovas, castanhas-do-pará, caviar do Mar Negro, morangos, rins grelhados, compota de abacaxi, queijo-de-minas, vidros de vitaminas. Esta mala estava intacta.
Na manhã seguinte, Angelina teve fome. Pediu a Bárbara que lhe fornecesse um pouco de comida. Bárbara fez-lhe ver que não podia concordar; os víveres pertenciam a ela, Bárbara, e não a Angelina. Resignada, Angelina afastou-se, à procura de frutos ou raízes. Nada encontrou; a região era completamente árida. Assim, naquele dia ela nada comeu. Nem nos três dias subsequentes. Bárbara, ao contrário, engordada a olhos vistos, talvez pela inatividade, uma vez que se contentava em ficar deitada, comendo e esperando que o socorro aparecesse. Angelina, pelo contrário, caminhava de um lado para outro, chorando e lamentando-se, o que só contribuía para aumentar suas necessidades calóricas.
No quarto dia, enquanto Bárbara almoçava, Angelina aproximou-se dela, com uma faca na mão. Curiosa, Bárbara parou de mastigar a coxinha de galinha, e ficou observando a outra, que estava parada, completamente imóvel.
De repente Angelina colocou a mão esquerda sobre uma pedra e de um golpe decepou o seu terceiro dedo. O sangue jorrou. Angelina levou a mão à boca e sugou o próprio sangue. Como a hemorragia não cessasse, Bárbara fez um torniquete e aplicou-o à raiz do dedo. Em poucos minutos, o sangue parou de correr. Angelina apanhou o dedo do chão, limpou-o e devorou-o até os ossinhos. A unha, jogou-a fora, porque em criança tinham-lhe proibido roer unhas – feio vício. Bárbara observou-a em silêncio.
Quando Angelina terminou de comer, pediu-lhe uma falange; quebrou-a, e com a lasca, palitou os dentes. Depois ficaram conversando, lembrando cenas da infância etc. Nos dias seguintes, Angelina comeu os dedos das mãos, depois os dos pés. Seguiram-se as pernas e as coxas. Bárbara ajudava-a a preparar as refeições, aplicando torniquetes, ensinando como aproveitar o tutano dos ossos etc. No décimo quinto dia, Angelina viu-se obrigada a abrir o ventre. O primeiro órgão que extraiu foi o fígado. Como estava com muita fome, devorou-o cru, apesar dos avisos de Bárbara, para que fritasse primeiro.
Como resultado, ao fim da refeição, continuava com fome. Pediu à Bárbara um pedaço de pão para passar no molhinho. Bárbara negou-se a atender o pedido, relembrando as ponderações já feitas. Depois do baço e dos ovários, Angelina passou ao intestino grosso, onde teve uma desagradável surpresa; além das fezes (achado habitual neste órgão), encontrou, na porção terminal, um grande tumor.
Bárbara observou que era por isto que a outra não vinha se sentindo bem há meses. Angelina concordou, acrescentando: “É pena que eu tenha descoberto isto só agora.” Depois, perguntou à Bárbara se faria mal comer o câncer. Bárbara aconselhou-a a jogar fora esta porção, que já estava até meio apodrecida; lembrou os preceitos higiênicos que devem ser mantidos sempre, em qualquer situação.
No vigésimo dia, Angelina expirou; e foi no dia seguinte que a equipe de salvamento chegou ao altiplano. Ao verem o cadáver semidestruído, perguntaram a Bárbara o que tinha acontecido; e a moça, visando preservar intacta a reputação da irmã, mentiu pela primeira vez em sua vida:
- Foram os índios. Os jornais noticiaram a existência de índios antropófagos na Bolívia, o que não corresponde à realidade.

Fonte: Os melhores contos de Moacyr Scliar, Global Editora.

Comentário do conto Canibais


Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre (RS), no Bom Fim, em 23 de março de 1937. Os seus contos assinalam seu talento e o vigor da sua ficção, na qual os jogos do poder e da paixão são mostrados sob perspectivas surpreendentes, em tom de humor e fantasia. Sua ficção é, quase sempre, pessimista e irônica quanto às desgraças humanas, com a crueldade da humanidade, que não receia desmascarar, quando escondidas sobre as supostas boas-intenções que costumam apresentar para serem mesquinhos e egoístas.
Logo à primeira leitura do conto, dois elementos chamaram-me a atenção: os nomes dados às duas personagens e a sua relação com a caracterização de ambas, apontando para as diferenças contrastantes ente elas, como um dos caminhos possíveis para a compreensão do texto e da crítica social que nele está embutida.
O nome “Bárbara” significa pessoa sem civilização, selvagem, inculta, desumana, rude. Por sua vez, “Angelina” provém da palavra anjo, significando pessoa bondosa, virtuosa, caritativa. Comparando os dois nomes, percebe-se uma polaridade entre eles, ensejada pela conotação negativa de um e positiva do outro. Este contraste entre as personagens tem continuidade na descrição dos traços individuais de cada uma delas.
Ao devorar os próprios membros e abrir o ventre, sangrando apesar dos torniquetes, Angelina não morre no tempo esperado. Pelas leis naturais que regem o nosso mundo, não há explicação para tal fato. Mesmo assim, o conto não se enquadraria no Fantástico, mas sim de uma alegoria. Neste caso, podemos admitir que o narrador, lança mão da história de Bárbara e Angelina como uma estratégia crítica para apontar as mazelas que tipificam as relações entre duas classes sociais coexistentes em nossa sociedade: a classe alta, representada pela rica Bárbara e a classe média desprivilegiada, representada por Angelina.
Esse conto nos revela duas faces do ser humano: uma está relacionada ao ato de antropofagia coletiva, em que uma classe social privilegiada esmaga e destrói a classe social desprivilegiada, considerada inferior, sem se preocupar com sentimentos e interesses que não sejam os seus ou com necessidades, que não sejam as suas. A outra face liga-se à autodestruição passiva do indivíduo ou da classe que crê nas palavras enganosas e na hipocrisia dos “antropófagos bolivianos” que circulam pela sociedade, nas mentiras proferidas por quem está no poder para manter sua situação de superioridade e de privilégios.
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Imagem na postagem: Foto de Moacyr Scliar.

10 de maio de 2016

Marina, a intangível, conto de M. Rubião


“Quem é esta que vai caminhando como a aurora quando se levanta, formosa como a lua, escolhida como o sol, terrível como um exército bem ordenado?” (Cântico dos Cânticos, 6,9)

Antes que tivesse de gritar por socorro, o silêncio me envolveu. Nem mesmo ouvia o bater do coração. Afastei da minha frente a Bíblia e me pus à espera de alguma coisa que estava por acontecer. Certamente seria a vinda de Marina.
Agoniado pela ausência de ruídos na sala, levantei-me da cadeira e quis fugir. Não dei sequer um passo e tornei a assentar-me: eu jamais conseguiria romper o vazio que se estenderam sobre a madrugada. Os sons teriam que vir de fora.
Afinal, duas pancadas longas e pesadas, que a imobilidade do ar fez ganhar em volume e nitidez, ressoaram, aumentando os meus sombrios pressentimentos. Vinham da capela dos capuchinhos, em cuja escadaria eu sempre me ajoelhava, a caminho do jornal.
Como persistisse o meu desamparo, balbuciei uma oração para Marina, a Intangível. A prece ajudou-me a reprimir a angústia, porém não me libertou da incapacidade de cumprir as umas poucas tarefas noturnas.
Sem me impressionar com o fato de a capela não possuir relógio, apertei a cabeça entre os dedos, procurando me concentrar nas minhas obrigações diárias. A cesta, repleta de papéis amarrotados, me desencorajava.
Movia-me, desinquieto, na cadeira, olhando com impotência as brancas folhas de papel, nas quais rabiscara umas poucas linhas desconexas. Além da sensação de plena inutilidade, o meu cérebro seguia vazio e não abrigava nenhuma esperança de que alguém pudesse me ajudar.
Para vencer a esterilidade, arremeti-me sobre o papel, disposto a escrever uma história, mesmo que fosse a mais caótica e absurda. Entretento, o desespero só fez crescer a dificuldade de expressar-me. Quando as frases vinham fáceis e enchia numerosas laudas, logo descobria que me faltara o assunto. Escrevera a esmo.
Inventei várias desculpas para explicar a minha inesperada inibição. Culpei o silêncio da madrugada, a falta de colegas perto de mim. Não me convenci: e nos outros dias? Eu era o único jornalista destacado para o plantão da noite. Sendo o jornal um vespertino, logicamente só ocupava os seus redatores na parte da manhã.
Tentei ainda persuadir-me de que, escrevendo ou não, o resultado seria o mesmo. O redator-chefe nunca aproveitava, na edição do dia, os meus artigos e crônicas, nem deixava determinadas as tarefas que eu deveria cumprir. Para suprir essa desagradável omissão, restava-me inventar, a procurar, ansioso, em velhos papéis, a matéria que iria utilizar nas minhas reportagens. Já abordara, em trabalhos extensos, os menores detalhes do trajeto que, ordinariamente, fazia entre a minha casa e o jornal, sem me esquecer de falar (com ternura) do nosso jardim. Um pequenino jardim , em forma de meia-lua, com algumas roseiras e secas margaridas.! Muito antes de ouvir o surdo rumor das pancadas, a expectativa me enervava. Não mais podia esperar. Que surgisse o que ameaçava vir! A qualquer momento poderia ser arrastado da cadeira e atirado ao ar. A ação da gravidade estava prestes a ser rompida.
De novo abri a Bíblia. Agora menos intranquilo. O silêncio se desfizera e, mesmo sabendo que as horas eram marcadas por um relógio inexistente, tinha a certeza de que o tempo retomara o seu ritmo. (Isso era importante para mim, que não desejava ficar parado no tempo.)
Poucas páginas havia lido e descobri o assunto procurado. Iria falar do mistério de Marina, a Intangível, também conhecida por Maria da Conceição.(Mudou de nome ao fugir de Nova Lima com o namorado. Jamais lhe teve amor. Dizem que ele, um velho soldado, carregava no peito centenas de cicatrizes de numerosas revoluções. Nunca foi promovido.)
A alegria de ter encontrado com facilidade afrase que abriria o pequeno ensaio não durou muito. Quando ia escrevê-la, fugiu-me da pena.
Abri a janela, que dava para o jardim, a fim de sentir melhor o perfume das rosas. Talvez elas me ajudassem. Porém, ao descerrar as venezianas, deparei deparei com a fisionomia de um desconhecido. Rapidamente afastei os olhos noutra direção. Aquela cara me incomodava. Toda ela era ocupada por um nariz grosso e curvo. Tornei a observar o intruso e vi que me olhava com insistência. Sem alterar o semblante, ou mover os músculos da face, disse-me:
-Recebi o seu recado, José Ambrósio. Aqui estou.
Imobilizei-me ao contemplar-lhe o rosto sem movimento, a cabeça desproporcionada, tomando boa parte do espaço da janela.
Recuperando-me do espanto que a sua presença me trouxera, retruquei com vigor:
-Não o conheço, nem disponho de tempo para atendê-lo.
Em seguida, fiz-lhe um sinal para se afastar. A sua figura desajeitada e estranha atormentava-me, impedia que tentasse elaborar um novo texto.
Penso que interpretou o meu gesto como um convite para entrar, pois deu umas passadas miúdas e penetrou na sala pela porta principal.
Deteve-se a alguns passos da minha escrivaninha e continuou a encarar-me. O corpo franzino, vestido de brim ordinário, o nariz imenso, a face plácida. (Uma nova idéia emergia do meu pensamento e desisti de concretizá-la, adivinhando que ele jamais permitiria que ela se efetivasse.)
Sabendo ainda que naquela madrugada nenhuma das obrigações seria cumprida, afastei de perto de mim as folhas de papel, disponho-me a ouvi-lo.
-São versos para publicar. Os que você me encomendou.
-Nada lhe encomendei. Por favor, afaste-se, tenho um trabalho urgente a terminar.
- Encomendou-me sim. Talvez não se recorde porque o pedido que me fez é anterior à sua doença.
Descontrolei-me, ouvindo tão cretina afirmação. Eu, doente?! O melhor seria encerrar o assunto e cortar de vez o nosso diálogo:
-Toda e qualquer modalidade poétic foge à linha do jornal. Se nem os meus artigos, que são mais importantes, ele publica!
Já nervoso, irritado com o meu incompreensível interlocutor, saltei da cadeira:
-Morra a poesia, morram os poetas!
Avancei enfurecido, com a intenção de pegá-lo pelo pescoço. Ao menos aquele poeta eu mataria.
Ele afastou-se devagar, a cara impassível, sem demonstrar medo ante a ameaça. À medida que eu me aproximava, o homenzinho recuava cauteloso, até que as suas costas encontraram a parede. Acuado, tentou o último recurso para me comover:
-São versos para Marina, a Intangível.
Caí de joelhos.
Tínhamos que publicar o poema. Mas como? Passei amistosamente o braço pelo ombro do poeta e outra vez lhe esclareci que os meus superiores jogavam fora tudo o que, à força de penosa elaboração, eu escrevia noite adentro.
Não pareceu dar importância ao meu argumento e disse estar em nossas mãos afastar quantos empercílhos encontrássemos. Desde que havia desinteresse pela publicação, nós mesmos nos encarregaríamos de fazê-la. Seria uma edição extraordinária do vespertino, toda ela dedicada à Marina.
_ E o pessoal para compor e imprimir o tablóide?- indaguei.
-Essa parte também ficará a nosso cargo.
Achei boa a idéia, apesar de saber que o jornal não possuía linotipos, impressora e eu nada entendia de composição gráfica.
Pra ganhar tempo, pedi-lhe que me mostrasse os versos.-
-Não os tenho aqui nem em parte alguma.
-Como poderemos imprimí-los, se não existem?
-Você os escreverá.
-Mas, se eu apenas faço poemas bíblicos?
-São exatamente esses os que eu desejo. A existência de Marina está neste trecho dos Cânticos: “Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor”.
-Mesmo assim, não sei escrevê-los.
-Vá me olhando e escrevendo, ordenou.
E começou a fazer gestos com as mãos. Gestos vagarosos que, ritmadamente, lhe cobriam e descobriam a face plácida, imóvel.
Não pude traduzir os movimentos todos, entretanto – coisa estranha – sentia que o poema de Marina poderia estar nascendo. Lindos e invisíveis versos!
-Estão prontos, declarou com firmeza. Agora é só compô-los.
Mirei o papel sem uma linha escrita, porém não tive coragem de contradizê-lo e o segui, casa adentro, em direção aos fundos do prédio.
Atravessamos algumas portas. Eu, com a lauda em branco nas mãos, andando devagar, procurava uma desculpa para lhe mostrar a impossibilidade de se editar extraordinariamente o jornal.
Ao chegarmos à velha cozinha, o último cômodo da casa, que dava acesso ao quintal, empurrei para trás o companheiro e gritei:
-É uma estupidez caminharmos mais. Não temos oficinas e este papel é uma odiosa mistificação- Os versos de Marina prescindem de máquinas, respondeu, afastando-me para o lado.
A minha capacidade de reagir se esgotara. Em silêncio, acompanhei-o ao terreiro.
-Traga as rosas- exigiu, logo que chegamos perto da mangueira.
Desanimado de formular uma objeção, a me roer o íntimo, fui busca-las e as entreguei. Estava arrasado. Nem as flores, que nunca eram apanhadas e se desfolhavam ao sabor do tempo, escapavam à virulência de desconhecido. E eu, fraco, entregava-me aos seus caprichos.
Ele as foi desfolhando com certa lentidão, muito compenetrado do trabalho. Rasgou as pétalas, pela metade, e colocou-as no chão. Formou palavras que não cheguei a decifrar e, em voz baixa, concluiu:
-Os primeiros cantos são feitos de rosas despetaladas. Lembram o paraíso antes do pecado.
- E os últimos? – indaguei aflito.
- Inexistem – respondeu, continuando a espalhar as pétalas.
Não podiam deixar de existir, pensava eu, agoniado. Alheio à minha ansiedade, o poeta prosseguia na sua tarefa. Decorrido algum tempo, murmurou:
- Só falta o girassol.
Percebi que chegara o momento de reagir com violência.(Primeiro, foram as rosas, jamais tocadas por alguém. Agora, os girassóis, que não existiam e nem podiam ser desfolhados!) Investi-me contra ele, disposto a partir-lhe os ossos. Sem recuar, levantou os braços, curtos e descarnados, para o alto: tocaram os sinos. Solenes e compassados.
Vieram os padres capuchinhos. Galgaram, ágeis, o muro, soprando silenciosas trombetas. (Dez muros tinham saltado e ainda teriam que saltar dez.) Um pouco atrás, vinha a Filarmônica Flor-de-lis, com os pistonistas envergando fardas vermelhas. Tocavam os seus instrumentos separadamente e sem música. Simplesmente soprados. Encheram a noite de sons agudos, desconexos, selvagens.
O coral dos homens de caras murchas veio em seguida. Seus componentes escancaravam a boca como se desejam cantar e nenhum som emitiam. Um deles, vestido de sacristão, carregava o relógio da capela dos capuchinhos.
Nem cheguei a me alegrar, constatando-lhe a existência, porque, num andor forrado de papel de seda, surgiu Marina, a Intangível, escoltada por padres sardentos e mulheres grávidas. Trazia no corpo um vestido de setim amarfanhado, as barras sujas de lama. Na cabeça, um chapéu de feltro, bastante usado, com um adorno de pena de galinha. Os lábios, excessivamente pintados e olheiras artificiais muito negras, feitas a carvão. Empunhava na mão direita um girassol e me olhava com ternura. Por entre o vestido rasgado, entrevi suas coxas brancas, bem feitas. Hesitei, um instante, entre os olhos e as pernas. Mas, os anjos de metal me prejudicaram a visão, enquanto as figuras começaram a crescer e a diminuir com rapidez. Passavm velozes, pulando os muros, que se estendiam continuamente, ao mesmo tempo que os planos subiam e baixavam. Eu corria de um lado para outro, afobado, arquejante, ora buscando os olhos, ora procurando as coxas de Marina, até que os gráficos encerraram a procissão. 
Os linotipos vinham voando junto aos obreiros, que compunham , muito atentos ao serviço.Letras manuscritas e garrafais. Os impressores, caminhando com o auxílio de compridas pernas de pau, encheram de papel o quintal.
O cortejo passou em segundos, e os muros, que antes via na minha frente, transformaram-se num só. Quis correr, para alcançar o andor que levava Marina, porém os papéis, jogados para o ar e espalhados pelo chão, atrapalharam-me.
Quando deles me desvencilhei, encontrava-me só no terreiro e nenhum som, nenhum ruído se fazia ouvir. Sabia, contudo, que o poema de Marina estava composto, irremediavelmente composto. Feito de pétalas rasgadas e de sons estúpidos.

Murilo Rubião.

Comentário do conto Marina, a intangível.


A escrita de Murilo Rubião é polissêmica e polifônica. Mesmo com toda a concisão e praticidade almejada por ele, há uma plurissignificação discursiva em cada enredo, no qual há uma confluência de vozes e de acepções. Vamos recordar aqui o 87. “Princípio do iceberg” que citamos no primeiro capítulo desta pesquisa. Nesse princípio, Hemingway sugere que apenas uma pequena parte do conto se mostra claramente para o leitor. O restante fica “submerso”. É nessa parte submersa que encontramos a polissemia e a polifonia discursiva em Rubião. E para entender essas entrelinhas, tentamos emergir pelo menos parte desse iceberg, em cada um dos contos. 
O conto “Marina, a Intangível”, como os demais, vem introduzido pela epígrafe bíblica. Marina é a palavra-mulher antevista nessa epígrafe, extraída do livro Cântico dos Cânticos. Quem é esta que vai caminhando como a aurora quando se levanta, formosa como a lua, escolhida como o sol, como um exército bem ordenado? (Cânticos dos Cânticos, VI, 10. In: RUBIÃO, 2006, p. 25). 
O questionamento levantado, nesse trecho bíblico, coloca-nos diante de uma encruzilhada interpretativa. Em uma via, encontramos um questionamento acerca da mulher. O pronome “quem” é próprio para pessoa e não para coisas. Além disso, o pronome demonstrativo “esta” e os adjetivos “formosa” e “escolhida” estão todos no feminino. Entretanto, em outra via, torna-se possível o entendimento da personificação da palavra a ser usada no conto que virá, e a exaltação dessa palavra que surge como a aurora, que tem força e ordenação de um exército em batalha. O fato de o trecho ter sido retirado do Cânticos dos Cânticos, livro bíblico carregado de lirismo e metáforas, permite-nos entendê-lo como sendo a glorificação da palavra, pela mediação do recurso da prosopopeia.
Na Igreja Católica, esses versos sagrados passaram a ser atribuídos à figura de Maria. Embora eles pertençam ao Antigo Testamento e Maria seja do Novo Testamento, os versos foram facilmente adaptados para a celebração a Nossa Senhora, principalmente na Congregação chamada de “Legião de Maria”, cujo hino diz: Quem é essa que surge formosa/ como o sol fulgurante na serra/ como aurora de luz radiosa/qual exército em linha de guerra?/ É Maria a mãe legionária/ É Maria a rainha do céu/ que nos faz ser a luz missionária/ para o mundo levar até Deus...(Manual católico da Legião de Maria, 1987, p. 16). 88 
É evidente a apropriação dos versos do livro Cânticos dos Cânticos na letra do hino. É como se a Igreja Católica tivesse atribuído aos versos um caráter profético que, já no Antigo Testamento, exaltassem a futura mãe do filho de Deus. Ironicamente, Rubião, declaradamente agnóstico, apropria-se do texto sagrado, despindo-o de toda a força discursiva religiosa. Há uma evidente dessacralização da linguagem, já que o conto desconstrói a figura da “Virgem”, pela configuração como ela vem descrita. Mantém-se o andor, a procissão e o fato dela vir carregada, como se faz com as imagens nos festejos católicos. Porém, as vestes e a maquiagem destoam da imagem arquetípica do Catolicismo, uma imagem de face pálida, vestes cândidas e olhar condolente. Marina vem como uma mistura entre Maria e Eva – conforme apontamos no capítulo anterior – mas também traz muito da Lilith. Assim, vemos o celeste, o terreno e o infernal fundidos em uma só criatura. 
Isso corrobora a ideia de que Rubião não adotou exclusivamente o gênero Fantástico, mas assimilou elementos do Estranho, do Realismo Mágico e do Maravilhoso. Da mesma forma que Marina traz esse hibridismo em sua constituição, a literatura dele também se faz híbrida. De acordo com o livro do Gênesis, o mundo foi feito por mediação da palavra, ou seja, do “logos”. Antes dos filósofos, essa palavra foi traduzida do grego como sendo “verbo” ou “palavra”. Na concepção filosófica passou a ser entendida como “razão”. No texto bíblico de João encontramos: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. (Jo 1.1-4).

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