15 de outubro de 2012

Osman Lins- Pastoral



Sem aqueles óculos de vidro grosso, meu padrinho, morto, parece outro homem. É outro homem. Olhava-me por trás das lentes, dizendo coisas sobre minha mãe, quando me deu Canária de presente. O sermão exalava afronta e crueldade, saía devagar pelo nariz, seu andar também mas cauteloso e miúdo, andar de cágado. Sendo caso de morte, e eu afilhado, meu pai não viu outro jeito, senio trazer-me à cidade. Ali está, senta­do, a boca aberta, ouvindo os numerosos sinos de Goia­na, dobrando pelo compadre. Quando se distrai, fica de boca aberta; os olhos não repousam, sondam tudo com desconfiança. Estou ouvindo sua voz soante, embora esteja calado. Todas as horas da vida, sem cessar, escuto sua voz. Não é para ele, nem para meu padrinho, é para as seis mulheres de Goiana, estranhos bichos não existen­tes no sítio (duas sentadas no banco, o rosto sobre as mãos, a terceira de pé, ao sol, prendendo os cabelos, ou­tra de olhos no espaço, reclinada no sofá, sozinha, braços estendidos no espaldar, e duas desfolhando cravos sobre o morto, é para estas que eu desejaria ter seis olhos. Ali­çona é mulher? Usa vestido, é certo, semelhante às saias e blusas dessas moças. Mas é mulher? Banhando-se no rio, nua, lembra um tronco nodoso, cinza e verde, grosso, coberto de limo. Tem os cabelos pretos. Mesmo as­sim, vejo na sua cara de azinhavre, larga e retalhada de rugas, idades que me assustam. As dessas moças não fa­zem medo. Peles finas, mãos bem tratadas, os vestidos brancos ou estampados, as orelhas com brincos, os sapa­tos delgados. Como são bonitas! Poderiam talvez brincar comigo, rolar nas folhas, dormir na minha cama. Isto, que parece um coro de cigarras, seis cigarras cantando, é o perfume de minhas seis goianenses.
Aqui, ninguém me vê. Canária entrega-se, mansa, a to­dos os agrados. Tento morder, de olhos fechados, o fuso que ela tem na testa. Pensando no perfume das moças, afogo-me em seu cheiro de égua nova, ainda quente de sol. A claridade enreda-se nos troncos, o prazer vem su­bindo pelas pernas. Meu corpo aumenta, prolonga-se nos flancos brilhantes e dourados, na curva do espinhaço, na cabeça erguida. Nesta baixada, o sol desaparece antes. A luz esponjosa reflete-se nas nuvens, infiltra-se nos ramos das velhas laranjeiras sob as quais eu e a poldra es­tamos escondidos. Começou a noite e as primeiras estre­las logo poderão ser vistas entre as folhas. Por isto, e também por causa dos cabelos compridos, tapando-me as orelhas (passam-se meses, sem que ninguém se lembre de cortá-los), não posso ver meu perfil. Joaquim, bem longe, abate uma árvore; chegam a meus joelhos, amor­tecidos, os golpes de machado. Mais um dia, mais um dia para amadurecer Canária e conduzi-la ao cavalo que está de pé em algum pasto, cavalo de cactos, crinas de agave, rabo de carrapichos.

Comentário do conto Pastoral, de Osman Lins


Segundo o Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa, Pastoral é uma forma de representação dramática, de argumento lendário que teve origem na Itália e preparou a criação da ópera. 

O conto Pastoral, de Osman Lins, afirma-se como uma narrativa reveladora da pressão que as normas comunitárias exercem sobre os mais fracos, os mais vulneráveis da comunidade. 
A história do menino - que se deixa matar lutando pela preservação do seu objeto de desejo,veicula, nas entrelinhas do enunciado, a denúncia do autoritarismo devastador da lei, representado pelo macho dominador, pela figura do pai. 
O relato do narrador-personagem Baltazar não mascara o tema edipiano de que trata, tampouco tenta ocultar o lado impactante de uma iniciação na vida sexual que se torna um espaço de abertura para a morte. 
É interessante a forma como é focalizado o incesto, mostrado por meio do "deslocamento", ou seja: na falta da mãe, o objeto do desejo do adolescente é deslocado para a égua Canária que, por sua vez, é também um objeto do desejo proibido pelas leis sociais. Esse deslocamento de uma proibição cultural - o incesto - para uma proibição aparentemente natural - a cópula entre espécies diferentes- remete, da mesma forma, para a área do interdito. 
Há também um aspecto moralizante no conto: Baltazar, o rebelde, é punido. Mas, a sua morte se transforma em lição moral. O discurso se compõe de forma a fazer da personagem um herói que se sacrifica por valores mais altos. 
Não deixa de ser interessante o triângulo amoroso: Baltazar - Canária - Cavalo, que equivale, metaforicamente, ao triângulo Baltazar - Mãe - Pai. 
A morte é um signo de revelação. O Padrinho morto parece outro homem. Baltazar morto descobre o quanto é criança, sem a crispação- gerada pelo medo, pela ansiedade - com que se protegia em vida. 
Como no conto Teorema de Herberto Helder, o narrador morto continua narrando, instaurando o fantástico na esfera do foco narrativo: 
"Estirado na mesa, sem velas, dedos cruzados. A pele de raposa cobrindo-me as virilhas..." 

Osman Lins transgrediu os limites de seu próprio sistema narrativo (primeira pessoa protagonista/visão com) ao conceder ao narrador-personagem os privilégios da onisciência. Este não pode ter uma visão externa de si mesmo, não pode, portanto, dar informações que transcendem os limites do seu estatuto. Ocorre que o "eu", em todas as composições do livro "Nove Novena", mais que o "eu" real é um "eu" ficcional. O autor utiliza-o abstratamente, insistindo em que não lhe atribui função testemunhal, ou confessional. Daí a faculdade dada ao personagem-narrador de se vê e se descrever, através de uma linguagem penetrada de uma realidade que não poderiam ser as suas. 
"Nove, Novena" é realizado com ampla e inovadora liberdade, é uma obra ousada. criativa e transgressiva das velhas normas que regem a arte de narrar.

Zenóbia Collares Moreira.