Sem aqueles óculos de vidro grosso, meu padrinho, morto, parece outro homem. É outro homem. Olhava-me por trás das lentes, dizendo coisas sobre minha mãe, quando me deu Canária de presente. O sermão exalava afronta e crueldade, saía devagar pelo nariz, seu andar também mas cauteloso e miúdo, andar de cágado. Sendo caso de morte, e eu afilhado, meu pai não viu outro jeito, senio trazer-me à cidade. Ali está, sentado, a boca aberta, ouvindo os numerosos sinos de Goiana, dobrando pelo compadre. Quando se distrai, fica de boca aberta; os olhos não repousam, sondam tudo com desconfiança. Estou ouvindo sua voz soante, embora esteja calado. Todas as horas da vida, sem cessar, escuto sua voz. Não é para ele, nem para meu padrinho, é para as seis mulheres de Goiana, estranhos bichos não existentes no sítio (duas sentadas no banco, o rosto sobre as mãos, a terceira de pé, ao sol, prendendo os cabelos, outra de olhos no espaço, reclinada no sofá, sozinha, braços estendidos no espaldar, e duas desfolhando cravos sobre o morto, é para estas que eu desejaria ter seis olhos. Aliçona é mulher? Usa vestido, é certo, semelhante às saias e blusas dessas moças. Mas é mulher? Banhando-se no rio, nua, lembra um tronco nodoso, cinza e verde, grosso, coberto de limo. Tem os cabelos pretos. Mesmo assim, vejo na sua cara de azinhavre, larga e retalhada de rugas, idades que me assustam. As dessas moças não fazem medo. Peles finas, mãos bem tratadas, os vestidos brancos ou estampados, as orelhas com brincos, os sapatos delgados. Como são bonitas! Poderiam talvez brincar comigo, rolar nas folhas, dormir na minha cama. Isto, que parece um coro de cigarras, seis cigarras cantando, é o perfume de minhas seis goianenses.
Aqui, ninguém me vê. Canária entrega-se, mansa, a todos os agrados. Tento morder, de olhos fechados, o fuso que ela tem na testa. Pensando no perfume das moças, afogo-me em seu cheiro de égua nova, ainda quente de sol. A claridade enreda-se nos troncos, o prazer vem subindo pelas pernas. Meu corpo aumenta, prolonga-se nos flancos brilhantes e dourados, na curva do espinhaço, na cabeça erguida. Nesta baixada, o sol desaparece antes. A luz esponjosa reflete-se nas nuvens, infiltra-se nos ramos das velhas laranjeiras sob as quais eu e a poldra estamos escondidos. Começou a noite e as primeiras estrelas logo poderão ser vistas entre as folhas. Por isto, e também por causa dos cabelos compridos, tapando-me as orelhas (passam-se meses, sem que ninguém se lembre de cortá-los), não posso ver meu perfil. Joaquim, bem longe, abate uma árvore; chegam a meus joelhos, amortecidos, os golpes de machado. Mais um dia, mais um dia para amadurecer Canária e conduzi-la ao cavalo que está de pé em algum pasto, cavalo de cactos, crinas de agave, rabo de carrapichos.