- Estou cansada. Quase meia-noite.
- Continuo de férias, posso acordar tarde.
- Mas eu, não. Afinal, que importa? Suporto bem uma noite sem sono. Tenho passado outras.
- É uma alusão a mim?
- Talvez.
- Não fiz censuras, perguntas, não disse nada. Desde o jantar que estamos calados.
- Existe alguma coisa que fui condenada a ouvir hoje. Sinto isso no ar, nas mãos. Espero, ao menos, que o horror tenha início antes que clareie o dia. Amanhã é terça, dia de trabalho.
Um de nós levantou-se, ou irá ainda levantar-se, entreabrir a cortina, olhar a noite. O rumor dos veículos, continuado, ascenderá - ascendeu? – das avenidas, regirando na sala, sobre as aquarelas em seus finos caixilhos, sobre as poltronas de couro com almofadas vermelhas, em torno do abajur aceso. As estrelas vibrando, parecendo abaladas pelo rumor da cidade que não dorme. Estamos de mãos dadas, qual destas mãos arde? Olhamos a parede vazia.
-Hoje, sofri novamente um ataque. Prometi nunca mais tornar a fazer isso. Mas não posso cumprir, simplesmente não posso. Veio com a mesma força de sempre. É abalador.
- Então não há remédio.
- Deve haver.
- Tenho de viver até quando nesta danação? Vou esperar até o fim da vida?
- É preciso compaixão.
- Novamente as palavras. Inúteis como sempre.
- Não são inúteis.
- Estou farta. Tínhamos passado três semanas sem essa coisa odiosa. Dias perfeitos.
- Manhãs, tardes e noites nós estávamos juntos. Eu não podia duvidar... de mim.
- Bastou eu me afastar algumas horas, para recomeçar outra vez. Então tudo o que faço é o mesmo que olhar nos olhos de um cego?
- Quero explicar.
- Prefiro não ouvir.
- Tenho de ouvir.
- E por cima de tudo, ainda isto: uma ausência total de piedade. Admito que suspeite de mim, embora sem motivo. Mas por que confessar? É crueldade.
- Quero ser sincero.
- Desprezo até a náusea esse tipo de sinceridade. Enjoa-me. Sinceridade, como? Entrego-me. Confio. Sinto os abraços, beijos. E que existe por dentro dos afagos? Tenho os olhos fechados. Minha boca está na minha boca. E dois olhos sondam-me. Isto é ser sincero?
- Não suspeito de nada, quando nos amamos.
- Como posso saber? Como posso crer?
- Estou dizendo: não suspeito de nada. Alguma coisa, quando estamos juntos, me restitui a confiança. Acho que assim vai ser eternamente, que toda sombra acabou e que não voltará a existir, entre nós , maldade alguma. De repente, vejo-me sozinho. E recomeço.
- Por que não suspeitar quando estou presente? Posso estar aqui, comigo, nua e pensando noutro homem. Comparando em segredo o modo de abraçar-me. O jeito de ...
- Melhor não prosseguir. Se destruo isso, esta segurança, a derradeira, a única, me resta o que?
- Pouco se me dá. Para mim, nem essa, ao menos, existe. Principio também a duvidar de mim mesma, já não me conheço, não sei mais quem sou.
Quem, com gestos nervosos, abre a cigarreira dourada, bate com um golpe decidido e seco a tampa do isqueiro, depois de olhar a chama demoradamente? Um se levanta, anda, outro permanece sentado, depois este se ergue, atravessamos a sala, alguém volta a sentar-se, continuamos de pé, dorso contra dorso, juntos.
- Quando me vi sozinho, fui deitar-me. Comecei a pensar como estas semanas tinham-nos aproximado e que todos os mal-entendidos cessariam. Não havíamos tido apenas alguns momentos alegres e tranqüilos. Todos esses dias foram de alegria e paz. Revi-me na praia, minha despreocupação no mar, o corpo, as coxas, recordei o calor das nossas peles depois do meio-dia. Lamentei as desconfianças antigas e pensei que depois de oito ano conquistáramos alguma coisa buscada durante todo esse tempo. Então fui ao banheiro e vi: estava seco.
- Tomei banho. Foi talvez o tempo que está quente.
- Sim.
- E passei a flanela na banheira.
- Nunca fiz isso.
- É o que sempre faço.
- Digo que o tempo estava quente. E logo em seguida, que a banheira está seca por causa da flanela que passei. Por que as duas versões? São estas mentiras que destroem.
- Não estou mentindo.
- Estou!
- Uma coisa não tem de excluir a outra. Tudo isso é absurdo.
- A toalha também estava seca. Disse a mim mesmo que não tinha importância. Mas neste momento, já começara a lembrar-me das recomendações que me fizera. Para não sair, aproveitar as últimas tardes de férias, ficar em casa preparando o trabalho sobre a correspondência de lawrence
- Foi um erro. Com determinadas pessoas, é impossível não errar. Erra-se sempre.
- Há parte de nós mesmos que não devem ser reveladas nunca. Mas é preciso que eu seja absolutamente sincero. Como lawrence. Ele era sincero.
- Não sou lawrence.
- O que senti, o que sinto, é igual ao que me sucedia quando era menino e ficava sozinho. Excitava-me com que? Retrato de mulheres? Histórias licenciosas? Com a solidão. Insensivelmente, irresistivelmente, eu buscava em mim o prazer, um prazer aflito e imaturo. Para em seguida cair em depressão; e começar tudo, assim que me visse outra vez só no quarto ou no banheiro. A solidão, para mim, era o mesmo que uma mulher nua. Agora, ela é como a presença de um rival.
- Não existe rival.
- Quando estamos juntos, é também assim que penso. Não há outro, nem ouve nunca, ambos nos amamos. Mas se me vejo só!
- Tenho prazer em despertar compaixão.
- Mereço compaixão.
Dirigi-me ao quarto de dormir, permaneço na sala, com vagarosos gestos ponho o négligé, afago o rosto, a barba começa a apontar, volto para junto de mim, são leves meus passos, continuo sentado, não me levantei.
- É melhor acabar com tudo. Estou cansada.
- Pensei que a insistência para que eu passasse a tarde em casa era um ardil.
- Não insisti.
- um ardil para que eu não saísse e não telefonasse. Por que não me banhara se havia tempo? Desejava ganhar alguns minutos, meia hora que fosse, chegar um pouco mais cedo a algum encontro ajustado há quinze dias, ou talvez combinado no hotel, num momento de ausência, talvez no cabeleireiro, ou na manicure, como se pode saber? Devo dizer que não telefonei.
- Não acredito. Houve um momento em que foram me chamar. Quando atendi, haviam desligado.
- Quem imagino que foi?
- Não faço idéia.
- Quem foi?
- Não sei. Sinceramente, não sei.
- Não telefonei. Mas vasculhei, uma por uma, todas as suas bolsas. Dizia a mim mesmo que estava fazendo uma insensatez, que poderia encontrar algum papel do qual não fosse culpada, mas que parecesse acusador e que isto me destruiria, e que afinal seria inútil, pois não tenho coragem de deixá-la.
- Encontrou alguma coisa?
- Isto: um nome de homem. Este endereço. Quero saber quem é.
- Não me lembro
- Empalideci.
- Quem não ficaria pálido? De cólera!
- Cólera por que, se eu é que sou o ofendido?
- Sou eu a ofendida.
- Quem é este?
- Ignoro. Talvez algum fabricante de calçados. Talvez seja algum cabeleireiro, recomendado por companheiras da repartição. A letra é minha. Mas não me lembro de haver escrito esse endereço. Talvez afinal um homem a quem eu ame e que me ofereça um pouco de paz. Que não me torture e que não se torture os dias todos da vida. Com esta fome de posse, de propriedade. Com estes laços, estas armadilhas, estas navalhas de suspeita. Eu queria morrer!
- Quem é o homem?
- Pelo amor de deus! Não existe homem algum, homem nenhum, outro homem. Nenhum.
- E este nome? Preciso saber.
- Todo mundo encontra em seus papéis, de vez em quando, notas que não sabe para que tomou.
- Fazendo um esforço, termina-se por recordar.
- Uma vez que o louco é irredutível, não pode escapar à loucura e agir como os sãos, estes condescendem em agir como se fossem doidos. Não por deliberação. Insensivelmente e porque não podem ser de outro modo. É o mal de conviver com loucos. Pois esta é a miséria: estou fazendo o esforço que me peço, tentando recordar. Preciso sair disto. Preciso, de uma vez por todas, sair disto.
- Então por que não saio?
Levanto-me, os olhos pesam de sono, vou ao mictório, levo um tempo enorme comprimindo o botão niquelado, ouvindo o jato violento da água, sentindo prazer nisso, deito-me. Giro em torno do leito posto no meio do quarto. Giro, interminável giro, e este caminhar é o mesmo que beber, devagar, um vinho insinuante.
- Estou pensando em quando fiz uma operação nos rins. Por que, sempre que há cenas assim, eles me doem? Fizeram-me um enxerto nos rins, com tecido cortado nos meus intestinos. E esperaram. Haviam feito o que tinham de fazer. O resto não lhes competia, não podiam forçar o tecido a viver em sua nova função.
- Não sei. Estou buscando um sentido para esta lembrança. Meu corpo reagiu, fez com que o enxerto não morresse. Sobrevivi. Sobrevivi para que? Posso saber?
- Tivemos, eu e eu, muitas horas felizes.
- Para o diabo com elas! Não quero horas felizes. Quero confiança e um pouco de respeito. Essas horas felizes vem cheias de veneno.
- Tudo na vida tem seu lado mau.
- Tudo na vida tem seu lado mau.
- Aqui todos os lados são maus, mesmo os que parecem bons. Aqui é o inferno.
Alguém abre as cortinas, corre as vidraças, e tudo permanece como antes, aqui é o inferno, o ar petrificado betuma esta janela aberta, aqui é o inferno.
- É o inferno. Acho que as pessoas, as vezes, sem o saber, são lançadas em vida no inferno. Ficam girando em roda, passando eternamente sobre os mesmos pontos. Quero sair disso, não foi de modo algum para esse sofrimento que meu corpo reagiu a morte. Mas como, se perdi a identidade e não sei mais quem sou? Somos como dois corpos enterrados juntos, roídos pela terra, os ossos misturados. Não sei mais quem sou.
- É porque nos amamos. Estamos confundidos, cada um é si próprio e também é o outro.
- Isso não é amor. Não se perde a identidade no amor. Mas no escritório, na vida coletiva; ou na demasiado solitária por falta de pontos de referência. No amor, pelo contrário, devemos reencontrar nossa identidade perdida.
- Repito que, no amor, cada um é si próprio e é o outro.
- Está bem. Que encontrei ainda, hoje, em minha busca, de si próprio e do outro?
- Prefiro não falar. Isso passou.
- Agora já me embriaguei, aderi à loucura. Quero saber.
Giro em redor do leito no qual estou prostrada, respiramos com dificuldade, não com exaltação, mas fatigadamente. Gostaria de ignorar estes passos que me cercam, passam em torno de mim ataduras de aflição, terror e desamparo, desejaria sentar-me, ou deitar-me, desejaria ser o que desejo ser, estou prostrada, falta-me ânimo até de erguer a voz, pedir que cessem os passos.
- Levantei o colchão, para ver se encontrava algum outro papel, revolvi a cesta. Tentei escrever. Era impossível, a tentação de continuar a procura não me abandonava. Deixei de lado lawrence e suas cartas, pus-me a folhear nossos livros. A esmo, e em seguida de modo sistemático. As mãos frias. Dizia a mim mesmo que estava cumprindo um ato injusto, mas não me continha, ia buscando, era como se eu precisasse encontrar alguma coisa. Foi um acesso, um ataque.
- Achei alguma coisa?
- Pétalas secas de rosa. Seriam de alguma rosa oferecida por mim?
- De certo.
- Eu não sabia. Olhava-as, como se pudesse existir nas rosas ofertadas por outro, uma textura diferente.havia um bilhete, sem o nome do destinatário. Igual a muitos outros que recebi ao longo destes anos, principalmente nos primeiros anos. Mas talvez aquele não fosse dirigido a mim. Por que estava ali?
- Quem pode saber?
- Toda essa busca é tão inútil! Para ter-se a verdade sobre alguém, seria preciso ver seu espírito. E isto é impossível. Essas buscas, essa perseguição, essas inquietações...
- Quero amar de um modo simples, definitivo, seguro.
Este silêncio e o espaço entre nós. A voz que rompe o espaço e o silêncio, com dificuldade, lenta, articulando uma hipótese perturbadora. (o amor , talvez, é uma espécie de enxerto. Não nos rins. Em outra parte qualquer, talvez na alma, e cujo êxito não depende de nós. Por mais que desejemos salva-lo, pode apodrecer e envenenar-nos.) e novamente o silêncio, espesso, amortecedor, palha e serragem entre objetos de louça.
- Estarei então envenenado? Estaremos envenenados?
- Não eu. Eu. Sim, pode ser que também eu esteja. Como posso saber, se não sei mais quem sou?
- É mais de meia noite.
- Muito mais. Não tarda a amanhecer. Outro círculo. O sol é redondo. Redonda é a terra. Em torno da terra fazemos uma volta; e a terra outra volta em redor do sol. E nós giramos, giramos e voltamos sempre ao mesmo ponto.
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