25 de setembro de 2012

Urbano Tavares Rodrigues: Uma Grande Imoralidade


Ao cair de mais um dia inútil, o Dr. Teodósio sentia murchar-lhe ao peito a rebeldia. Chegava a casa, lavava-se com água quase a ferver, esfregava-se com alfazema, mas o marasmo endurecido do hospital persistia nele. Àquela hora, sabia que uma única servente tomava conta de quarenta camas, na sua enfermaria. Lembrava-se: não havia muito, já ali morrera estrangulado, por falta de vigilância um miúdo que, num acesso de febre, tentara saltar do leito e se enforcara no próprio lençol, que ficava sempre entalado de modo a evitar fugas. Revia-o de olho verde-escuro, garotão, quase bonito, mesmo com aquelas faces de fome endémica e a vermelhidão do sarampo.
Chovia sobre as acácias do jardim, mas a noite do hospital custava a adormecer por entre os membros das árvores, onde a chuva aliciante cantava o seu canto do esquecimento. Não: nem a mulher, nem a cigarrilha, nem o livro, nem o saco de água quente, nada o distraía daquela praga de sarampos, escarlatinas, papeiras, febres tifóides, anginas estafilocócicas, que, mesmo no quarto de seu repouso o afligia. "Sou novo", estão-se sempre a dizer: ainda tens de comer muito pão..., e outras vezes, se me exalto: Deixa correr, não é por tu gritares... Olha, de calar ninguém se arrepende, de falar...
Além disso, tinha um problema de consciência; estaria realmente à altura, ainda sem prática clínica nem conhecimento da terapêutica? Claro que conhecia todas as patologias, mas trezentos doentes à sua conta não era brincadeira. Impossível atendê-los convenientemente a todos, por mais que fizesse e quisesse.
E o material?! Os pratos de alumínio amolgados, que serviam para duas ou três pessoas, enxaguados à pressa ali mesmo, sem desinfecção, transmitindo bacilos com a velha franqueza patriarcal da nossa terra! Às vezes um tremor de raiva me sacudia. Mas não adiantava barafustar com desgraçados que apenas cumpriam ordens e que andavam também azedos a tilintar, ao pé dos quais ele era um reizinho, senhor de desencadear, ao menos, o trovão da descompostura que alivia. Não, não podia ser assim.
Faltavam fronhas para os travesseiros, não havia toalhas que bastassem; as mulheres nem sequer dispunham de panos higiênicos durante o período menstrual, o que fazia com que se limpassem à roupa da cama. Era por todo o lado uma sordidez de calafrios, quieta e acomodada; e, mesmo assim, entre o desprezo e as chagas, a esperança resistia.
-Então, doutor, quando é que tenho alta?
Mal sabia ela que, se as coisas não mudassem, aí pelo dia vinte, a alta era para o cemitério. E talvez não fosse, porque o Dr. Teodósio, aquele "parvo chapado", pagava os remédios do seu bolso, olé! Era um novo com vocação de novo, com a vocação do hospital, dias atrás do precipício: os velhos que querem sê-lo muito tempo começam a sê-lo cedo...
Revolvia-se na insônia, rememorando a conversa que tivera com o director do hospital, dias atrás. Porque não se podia admitir, de facto, que a partir do dia vinte ou vinte e cinco, quando muito, se verificasse aquela carência de medicamentos.

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Comentário do conto Uma Grande Imoralidade.


Urbano Tavares Rodrigues é um dos melhores contistas portugueses. Combativo e ousado em suas críticas aos desmandos e misérias que observava na sociedade da época salazarista, especialmente no que toca aos mais pobres e vítimas do abandono a que eram relegados pelo poder constituído. Lançando mão da ironia e do sarcasmo, armas usadas por Gil Vicente para exercer sua demolidora crítica mordaz contra as mazelas do clero e da sociedade de sua época, Urbano desconstrói a hipocrisia avassaladora dos representantes do governo cujo interesse em solucionar os graves problemas de saúde do povo não passa de mera encenação, de vergonhosa inspeção em nada interessada em ver, em examinar, em buscar a urgente solução que salvaria tantas vidas.
Uma Grande Imoralidade irrompe em sua obra como um grito de revolta contra a situação de flagelo em que se encontrava a saúde pública, especialmente nos hospitais do Estado. Conto de intencionalidade moralizante, altamente crítico e condenatório em relação ao poder constituído, afirma-se como uma denúncia veemente à situação caótica do sistema hospitalar português no período ditatorial.
A narrativa é conduzida por um narrador homodiegético - o Dr. Teodósio - um jovem e idealista médico recém saído da residência médica para trabalhar em um hospital público. Imbuído dos mais nobres ideais profissionais e humanitários, o inexperiente e abnegado médico vê-se confrontado com as péssimas condições de trabalho junto aos enfermos. Apesar do superávit anual do orçamento, falta tudo, desde o mais essencial ao absolutamente indispensável na enfermaria na qual teria que cuidar de trezentos pacientes, sem dispor dos medicamentos necessários a tratá-los.
O ponto alto da narrativa é a visita de um Subsecretário que viria inspecionar o hospital, como fizera em todos os estabelecimentos de saúde mantidos pelo governo "que eloqüentemente atestava o progresso, a paz,
a ordem e a tranqüilidade da nação", conforme era divulgado pelo discurso demagógico ditado pela hipocrisia e falso moralismo ditatorial.
A narrativa acelera-se com as interferências do Dr. Teodósio, insistindo em abrir os olhos do "notável homem público" para uma situação inteiramente contrária às que o "Ilustre visitante" costumava encontrar em suas inspeções, previamente anunciadas, justamente para que todas as mazelas dos serviços públicos fossem maquiladas, disfarçadas e sequer mencionadas.
O Dr. Teodósio com seu discurso denunciador, com a sua exagerada insistência em revelar o que a "Sua Excelência" não desejava saber, nem ver, só desejava sensibilizar o Subsecretário e obter mudanças radicais naquela miséria pública. Pelo seu empenho, apesar do agastamento do "Ilustre Visitante", parecia que a narrativa se encaminhava para um desfecho positivo que significaria a dignidade trazida de volta ao hospital. No entanto, o autor opta por um caminho diferente e surpreendente, construindo o conto a partir de uma estrutura "anedótica", ou seja: deixa o leitor ser levado por um caminho, torcendo para que o Dr. Teodósio conseguisse mudar a postura do Subsecretário para uma outra que mudasse a triste realidade do hospital, mas, de súbito, o que vemos é o representante do governo falar pela primeira vez, com veemência, parecendo que ia concordar com o Dr. Teodoro: "há aqui muita coisa que não se admite, muita coisa que choca profundamente: por exemplo, aquela enfermaria com cinco mulheres descompostas e três rapazes. Já quase homens. Isso tem que mudar: é uma grande imoralidade!"
Esse final altamente crítico e revelador da hipocrisia e do apego às aparências que sustentam os valores de um governo que nunca entendeu o que significa "imoralidade", além da conotação libidinosa. Segundo tais valores, imoral é mulheres descompostas e garotos de 10 anos estarem juntos. Não enxergam que imoral é estarem juntos em sua agonia, ardendo em febre, lutando contra a morte que os ameaça e que os levará por falta de remédios. As palavras do Subsecretário soa como uma piada, remete ao risível. E nada mais demolidor que a crítica pelo riso...


4 de setembro de 2012

Osman Lins, Os confundidos

- Estou cansada. Quase meia-noite.
- Continuo de férias, posso acordar tarde.
- Mas eu, não. Afinal, que importa? Suporto bem uma noite sem sono. Tenho passado outras.
- É uma alusão a mim?
- Talvez.
- Não fiz censuras, perguntas, não disse nada. Desde o jantar que estamos calados.
- Existe alguma coisa que fui condenada a ouvir hoje. Sinto isso no ar, nas mãos. Espero, ao menos, que o horror tenha início antes que clareie o dia. Amanhã é terça, dia de trabalho.
Um de nós levantou-se, ou irá ainda levantar-se, entreabrir a cortina, olhar a noite. O rumor dos veículos, continuado, ascenderá - ascendeu? – das avenidas, regirando na sala, sobre as aquarelas em seus finos caixilhos, sobre as poltronas de couro com almofadas vermelhas, em torno do abajur aceso. As estrelas vibrando, parecendo abaladas pelo rumor da cidade que não dorme. Estamos de mãos dadas, qual destas mãos arde? Olhamos a parede vazia.
-Hoje, sofri novamente um ataque. Prometi nunca mais tornar a fazer isso. Mas não posso cumprir, simplesmente não posso. Veio com a mesma força de sempre. É abalador.
- Então não há remédio.
- Deve haver.
- Tenho de viver até quando nesta danação? Vou esperar até o fim da vida?
- É preciso compaixão.
- Novamente as palavras. Inúteis como sempre.
- Não são inúteis.
- Estou farta. Tínhamos passado três semanas sem essa coisa odiosa. Dias perfeitos.
- Manhãs, tardes e noites nós estávamos juntos. Eu não podia duvidar... de mim.
- Bastou eu me afastar algumas horas, para recomeçar outra vez. Então tudo o que faço é o mesmo que olhar nos olhos de um cego?
- Quero explicar.
- Prefiro não ouvir.
- Tenho de ouvir.
- E por cima de tudo, ainda isto: uma ausência total de piedade. Admito que suspeite de mim, embora sem motivo. Mas por que confessar? É crueldade.
- Quero ser sincero.
- Desprezo até a náusea esse tipo de sinceridade. Enjoa-me. Sinceridade, como? Entrego-me. Confio. Sinto os abraços, beijos. E que existe por dentro dos afagos? Tenho os olhos fechados. Minha boca está na minha boca. E dois olhos sondam-me. Isto é ser sincero?
- Não suspeito de nada, quando nos amamos.
- Como posso saber? Como posso crer?
- Estou dizendo: não suspeito de nada. Alguma coisa, quando estamos juntos, me restitui a confiança. Acho que assim vai ser eternamente, que toda sombra acabou e que não voltará a existir, entre nós , maldade alguma. De repente, vejo-me sozinho. E recomeço.
- Por que não suspeitar quando estou presente? Posso estar aqui, comigo, nua e pensando noutro homem. Comparando em segredo o modo de abraçar-me. O jeito de ...
- Melhor não prosseguir. Se destruo isso, esta segurança, a derradeira, a única, me resta o que?
- Pouco se me dá. Para mim, nem essa, ao menos, existe. Principio também a duvidar de mim mesma, já não me conheço, não sei mais quem sou.
Quem, com gestos nervosos, abre a cigarreira dourada, bate com um golpe decidido e seco a tampa do isqueiro, depois de olhar a chama demoradamente? Um se levanta, anda, outro permanece sentado, depois este se ergue, atravessamos a sala, alguém volta a sentar-se, continuamos de pé, dorso contra dorso, juntos.
- Quando me vi sozinho, fui deitar-me. Comecei a pensar como estas semanas tinham-nos aproximado e que todos os mal-entendidos cessariam. Não havíamos tido apenas alguns momentos alegres e tranqüilos. Todos esses dias foram de alegria e paz. Revi-me na praia, minha despreocupação no mar, o corpo, as coxas, recordei o calor das nossas peles depois do meio-dia. Lamentei as desconfianças antigas e pensei que depois de oito ano conquistáramos alguma coisa buscada durante todo esse tempo. Então fui ao banheiro e vi: estava seco.
- Tomei banho. Foi talvez o tempo que está quente.
- Sim.
- E passei a flanela na banheira.
- Nunca fiz isso.
- É o que sempre faço.
- Digo que o tempo estava quente. E logo em seguida, que a banheira está seca por causa da flanela que passei. Por que as duas versões? São estas mentiras que destroem.
- Não estou mentindo.
- Estou!
- Uma coisa não tem de excluir a outra. Tudo isso é absurdo.
- A toalha também estava seca. Disse a mim mesmo que não tinha importância. Mas neste momento, já começara a lembrar-me das recomendações que me fizera. Para não sair, aproveitar as últimas tardes de férias, ficar em casa preparando o trabalho sobre a correspondência de lawrence
- Foi um erro. Com determinadas pessoas, é impossível não errar. Erra-se sempre.
- Há parte de nós mesmos que não devem ser reveladas nunca. Mas é preciso que eu seja absolutamente sincero. Como lawrence. Ele era sincero.
- Não sou lawrence.
- O que senti, o que sinto, é igual ao que me sucedia quando era menino e ficava sozinho. Excitava-me com que? Retrato de mulheres? Histórias licenciosas? Com a solidão. Insensivelmente, irresistivelmente, eu buscava em mim o prazer, um prazer aflito e imaturo. Para em seguida cair em depressão; e começar tudo, assim que me visse outra vez só no quarto ou no banheiro. A solidão, para mim, era o mesmo que uma mulher nua. Agora, ela é como a presença de um rival.
- Não existe rival.
- Quando estamos juntos, é também assim que penso. Não há outro, nem ouve nunca, ambos nos amamos. Mas se me vejo só!
- Tenho prazer em despertar compaixão.
- Mereço compaixão.
Dirigi-me ao quarto de dormir, permaneço na sala, com vagarosos gestos ponho o négligé, afago o rosto, a barba começa a apontar, volto para junto de mim, são leves meus passos, continuo sentado, não me levantei.
- É melhor acabar com tudo. Estou cansada.
- Pensei que a insistência para que eu passasse a tarde em casa era um ardil.
- Não insisti.
- um ardil para que eu não saísse e não telefonasse. Por que não me banhara se havia tempo? Desejava ganhar alguns minutos, meia hora que fosse, chegar um pouco mais cedo a algum encontro ajustado há quinze dias, ou talvez combinado no hotel, num momento de ausência, talvez no cabeleireiro, ou na manicure, como se pode saber? Devo dizer que não telefonei.
- Não acredito. Houve um momento em que foram me chamar. Quando atendi, haviam desligado.
- Quem imagino que foi?
- Não faço idéia.
- Quem foi?
- Não sei. Sinceramente, não sei.
- Não telefonei. Mas vasculhei, uma por uma, todas as suas bolsas. Dizia a mim mesmo que estava fazendo uma insensatez, que poderia encontrar algum papel do qual não fosse culpada, mas que parecesse acusador e que isto me destruiria, e que afinal seria inútil, pois não tenho coragem de deixá-la.
- Encontrou alguma coisa?
- Isto: um nome de homem. Este endereço. Quero saber quem é.
- Não me lembro
- Empalideci.
- Quem não ficaria pálido? De cólera!
- Cólera por que, se eu é que sou o ofendido?
- Sou eu a ofendida.
- Quem é este?
- Ignoro. Talvez algum fabricante de calçados. Talvez seja algum cabeleireiro, recomendado por companheiras da repartição. A letra é minha. Mas não me lembro de haver escrito esse endereço. Talvez afinal um homem a quem eu ame e que me ofereça um pouco de paz. Que não me torture e que não se torture os dias todos da vida. Com esta fome de posse, de propriedade. Com estes laços, estas armadilhas, estas navalhas de suspeita. Eu queria morrer!
- Quem é o homem?
- Pelo amor de deus! Não existe homem algum, homem nenhum, outro homem. Nenhum.
- E este nome? Preciso saber.
- Todo mundo encontra em seus papéis, de vez em quando, notas que não sabe para que tomou.
- Fazendo um esforço, termina-se por recordar.
- Uma vez que o louco é irredutível, não pode escapar à loucura e agir como os sãos, estes condescendem em agir como se fossem doidos. Não por deliberação. Insensivelmente e porque não podem ser de outro modo. É o mal de conviver com loucos. Pois esta é a miséria: estou fazendo o esforço que me peço, tentando recordar. Preciso sair disto. Preciso, de uma vez por todas, sair disto.
- Então por que não saio?
Levanto-me, os olhos pesam de sono, vou ao mictório, levo um tempo enorme comprimindo o botão niquelado, ouvindo o jato violento da água, sentindo prazer nisso, deito-me. Giro em torno do leito posto no meio do quarto. Giro, interminável giro, e este caminhar é o mesmo que beber, devagar, um vinho insinuante.
- Estou pensando em quando fiz uma operação nos rins. Por que, sempre que há cenas assim, eles me doem? Fizeram-me um enxerto nos rins, com tecido cortado nos meus intestinos. E esperaram. Haviam feito o que tinham de fazer. O resto não lhes competia, não podiam forçar o tecido a viver em sua nova função.
- Aonde eu quero chegar?

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Comentário do conto "Os Confundidos", de Osman Lins

A fábula do conto resume-se, praticamente, numa cena de ciúmes. O diálogo gira, assim, em torno da hipotética, porém não confirmada, infidelidade da mulher. A confusão instaurada entre ambos impossibilita, no entanto, que cheguem a um entendimento esclarecedor da verdade buscada por ambos. Confusão esta decorrente justamente da mistura dos discursos e das perspectivas dos dois interlocutores, pois, enredados no próprio emaranhado das suas falas indiferenciadas, tanto o homem, quanto a mulher passam a se confundir.
A sistemática recusa, por parte dos “amantes” confundidos, na condição de sujeitos da enunciação, de fazer uso da segunda pessoa em seus discursos, desvirtua completamente o diálogo e transforma-o num monólogo ininteligível. Eles não mais se entendem, porque roubaram-se, reciprocamente, as individualidades, tiraram, um ao outro, a marca do pessoal.
A distância entre os dois “eus” desaparece. De tão próximos, eles não mais se enxergam como seres distintos: perderam a noção do “eu” e do “outro”. Desta situação resulta a diluição das suas identidades individuais. Cada um é si próprio e também o outro em um caminho que parece sem volta – “Quero sair disto, não foi de modo algum para este sofrimento que meu corpo reagiu à morte. Mas como, se perdi a identidade e não sei mais quem sou? Somos como dois corpos enterrados juntos, corroídos pela terra, os ossos misturados. Não sei mais quem eu sou.”
Aliás, em matéria de condensação de sentidos, "Os confundidos" vão às últimas conseqüências. Por permutação e confusão, as terminações verbais ora separam em dois, ora os fundem num só "eu", ele a acusá-la de infidelidade, ela a defender-se do seu ciúme doentio. Esses amantes a girarem obsessivamente um em torno do outro são passíveis de várias e igualmente ambíguas leituras como figurações da fusão amorosa.

Zenóbia Collares Moreira