O conto de Clarice trata da descoberta da pobreza por essa mulher confinada e protegida por um bom negócio matrimonial, mas reduzida a mecânicos atos quotidianos de auto-anulação, infeliz e culpada. A descoberta da pobreza dá-se junto com a autodescoberta como consumidora e parasita social, o que, de modo fulminante, desvenda o sem sentido da sua vida e da vida dos homens numa cidade grande que expõe talvez mais duramente os contrastes de uma sociedade injusta. O conto em que isso está mais visível é um conto inacabado mas que, independente da forma final que iriam ter seus fragmentos, já como Clarice o deixou, revela talvez por isso mesmo, porque ainda não arranjado em obra, essa vertente temática que, a partir daí , podemos reconhecer, meio disfarçada, em outros momentos dos contos e, mesmo, dos romances. Trata-se do conto póstumo A Bela e a Fera.
A bela, Carla de Souza e Santos, "quatrocentos anos de carioca", sai do espaço defendido do cabeleireiro chic do Copacabana Palace Hotel aonde fora protegida em seu carro oleado, que corria "sem barulho de metal ferrugento", conduzido por chofer particular. Com ele deveria voltar diretamente à casa para, depois, dirigir-se a outro espaço defendido - o de uma festa grã-fina. O conto, narrado por fragmentos aparentemente desconexos, nos deixa entrever que, na vida da jovem senhora que o casamento fizera mudar de classe, a cidade do Rio de Janeiro é outra. É uma espécie de cidade-fortaleza onde habitam os viçosos, os que podem tudo, até mesmo viver uma vida inteira sem dar-se conta da existência da cidade real, em que trabalhadores convivem lado a lado com marginais e mendigos.
Assim seria a vida de Carla, se não tivesse havido um imprevisto: o desencontro com o chofer, por ela ter saído do salão de beleza antes da hora combinada, agravado pelo fato de não contar com dinheiro trocado para o táxi. Essas são, aliás, as razões pretensamente objetivas que Carla se dá para subitamente sair porta afora da sua cidade defendida e descobrir a outra, a que começa na avenida Copacabana, onde há "pessoas de toda espécie". Mas o texto sugere também que essa saída é uma espécie de busca, de reencontro consigo mesma pelo encontro do outro de classe. Podendo "voltar ao salão de beleza e pedir dinheiro", desiste, porque a tentação da rua foi mais forte: "era uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. Assim achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua - ao vento que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última vez que estivera sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela - com outros - refletia e os outros refletiam-se nela. Nada era... era puro, pensou sem se entender". Quando Carla sai à rua, o olhar míope da mulher confinada de que nos falava Gilda de Mello e Souza quando da publicação de A maçã no escuro, descortina visões e pensamentos inusitados, fazendo-nos enxergar e ouvir o mundo que berra pela boca desdentada de um mendigo, como berrava pela boca do cego mascando chiclete, em Amor.
A visão do mendigo que vive de uma ferida na perna confronta Carla consigo mesma e com a sua própria ferida na alma: a alienação da mulher que se vendeu: Agora entendia que se casara da primeira vez e estava em leilão: quem dá mais? quem dá mais? (...). Então está vendida. Sim, casara-se pela primeira vez com o homem que "dava mais". (...) Vendera-se. E o segundo marido? Seu casamento (está) findando, ele com duas amantes fora a mulher e a mulher suportava tudo porque um rompimento seria um escândalo: seu nome era por demais citado nas colunas sociais. (...) Aliás, ela aceitara este segundo porque lhe dava grande prestígio. Vendera-se às colunas sociais? Sim. Descobrira isso agora. Descobrir isso é descobrir também que não se é uma self-made woman pelo simples fato de estar casada com um self-made man.
O casamento por dinheiro apagara tudo isso, mas apagara também uma parte dela mesma que o encontro com o mendigo na Avenida Copacabana ameaça trazer de volta com força e perigosamente. A alienação da mulher rica se expressa na festa permanente, sem nem ter o que festejar. E, na festa, os homens falam de negócios e as mulheres exibem a beleza fabricada a peso de ouro nos salões da Avenida Atlântica. Essa alienação é simétrica à do mendigo, expressa na cachaça que o ajuda a suportar a quotidiana exibição da sua mercadoria: a ferida na perna de que sobrevive. Festa e cachaça, obsessões respectivas em que um e outro costumam afogar uma falta comum - a falta de amor - e a pré-ciência de um destinno, apesar de tudo também comum: o da morte certa. Tudo isso é explicitado por este conto ainda de discurso transparente, talvez porque inacabado, anterior ao trabalho de polimento e de despojamento, das máscaras e dos mistérios de Clarice em suas versões finais.
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Resumo da análise do conto, realizada por Ligia Chiappini, no estudo intitulado: “Mulheres. Galinhas e Mendigos: Clarice Lispector, contos em confronto.”
A bela, Carla de Souza e Santos, "quatrocentos anos de carioca", sai do espaço defendido do cabeleireiro chic do Copacabana Palace Hotel aonde fora protegida em seu carro oleado, que corria "sem barulho de metal ferrugento", conduzido por chofer particular. Com ele deveria voltar diretamente à casa para, depois, dirigir-se a outro espaço defendido - o de uma festa grã-fina. O conto, narrado por fragmentos aparentemente desconexos, nos deixa entrever que, na vida da jovem senhora que o casamento fizera mudar de classe, a cidade do Rio de Janeiro é outra. É uma espécie de cidade-fortaleza onde habitam os viçosos, os que podem tudo, até mesmo viver uma vida inteira sem dar-se conta da existência da cidade real, em que trabalhadores convivem lado a lado com marginais e mendigos.
Assim seria a vida de Carla, se não tivesse havido um imprevisto: o desencontro com o chofer, por ela ter saído do salão de beleza antes da hora combinada, agravado pelo fato de não contar com dinheiro trocado para o táxi. Essas são, aliás, as razões pretensamente objetivas que Carla se dá para subitamente sair porta afora da sua cidade defendida e descobrir a outra, a que começa na avenida Copacabana, onde há "pessoas de toda espécie". Mas o texto sugere também que essa saída é uma espécie de busca, de reencontro consigo mesma pelo encontro do outro de classe. Podendo "voltar ao salão de beleza e pedir dinheiro", desiste, porque a tentação da rua foi mais forte: "era uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. Assim achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua - ao vento que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última vez que estivera sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela - com outros - refletia e os outros refletiam-se nela. Nada era... era puro, pensou sem se entender". Quando Carla sai à rua, o olhar míope da mulher confinada de que nos falava Gilda de Mello e Souza quando da publicação de A maçã no escuro, descortina visões e pensamentos inusitados, fazendo-nos enxergar e ouvir o mundo que berra pela boca desdentada de um mendigo, como berrava pela boca do cego mascando chiclete, em Amor.
A visão do mendigo que vive de uma ferida na perna confronta Carla consigo mesma e com a sua própria ferida na alma: a alienação da mulher que se vendeu: Agora entendia que se casara da primeira vez e estava em leilão: quem dá mais? quem dá mais? (...). Então está vendida. Sim, casara-se pela primeira vez com o homem que "dava mais". (...) Vendera-se. E o segundo marido? Seu casamento (está) findando, ele com duas amantes fora a mulher e a mulher suportava tudo porque um rompimento seria um escândalo: seu nome era por demais citado nas colunas sociais. (...) Aliás, ela aceitara este segundo porque lhe dava grande prestígio. Vendera-se às colunas sociais? Sim. Descobrira isso agora. Descobrir isso é descobrir também que não se é uma self-made woman pelo simples fato de estar casada com um self-made man.
O casamento por dinheiro apagara tudo isso, mas apagara também uma parte dela mesma que o encontro com o mendigo na Avenida Copacabana ameaça trazer de volta com força e perigosamente. A alienação da mulher rica se expressa na festa permanente, sem nem ter o que festejar. E, na festa, os homens falam de negócios e as mulheres exibem a beleza fabricada a peso de ouro nos salões da Avenida Atlântica. Essa alienação é simétrica à do mendigo, expressa na cachaça que o ajuda a suportar a quotidiana exibição da sua mercadoria: a ferida na perna de que sobrevive. Festa e cachaça, obsessões respectivas em que um e outro costumam afogar uma falta comum - a falta de amor - e a pré-ciência de um destinno, apesar de tudo também comum: o da morte certa. Tudo isso é explicitado por este conto ainda de discurso transparente, talvez porque inacabado, anterior ao trabalho de polimento e de despojamento, das máscaras e dos mistérios de Clarice em suas versões finais.
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Resumo da análise do conto, realizada por Ligia Chiappini, no estudo intitulado: “Mulheres. Galinhas e Mendigos: Clarice Lispector, contos em confronto.”
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