6 de janeiro de 2012

Clarice Lispector: A Bela e a Fera ou A Ferida Grande Demais.

Bem, então saiu do salão de beleza pelo elevador do Copacabana Palace Hotel. O chofer ñ estava lá. Olhou o relógio: eram quatro horas da tarde. E de repente lembrou-se: tinha dito a ‘seu’ José para vir buscá-la às cinco, ñ calculando que não faria as unhas dos pés e das mãos, só massagem. Que devia fazer ? Tomar um táxi? Mas tinha consigo uma nota de quinhentos cruzeiros e o homem do táxi não teria troco. Trouxera dinheiro porque o marido lhe dissera q nunca se deve andar sem nenhum dinheiro. Ocorreu-lhe voltar ao salão de beleza e pedir dinheiro. Mas – mas era uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. Assim achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua – ao vento que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última vez que estava sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela – com outros, e nesses outros ela se refletia e os outros se refletiam nela. Nada era – era puro, pensou sem se entender.
Quando se viu no espelho – a pele trigueira pelos banhos de sol fazia ressaltar as flores douradas perto do rosto nos cabelos negros -, conteve-se para ñ exclamar um ‘ah!’ – pois ela era cinquenta milhões de unidades de gente linda. Nunca houve – em todo o passado do mundo – alguém q fosse como ela. E depois, em três trilhões de trilhões de ano – ñ haveria uma moça exatamente como ela.
‘Eu sou uma chama acesa! E rebrilho e rebrilho toda essa escuridão!’
Este momento era único – e ela teria durante toda a vida milhares de momentos únicos. Até suou frio na testa, por tanto lhe ser dado e por ela avidamente tomado.
‘A beleza pode levar à espécie de loucura q é a paixão.’ Pensou: ‘estou casada, tenho três filhos, estou segura.’
Ela tinha um nome a preservar: era Carla de Sousa e Santos. Eram importantes o ‘de’ e o ‘e’: marcavam classe e quatrocentos anos de carioca. Vivia nas manadas de mulheres e homens q, sim, q ‘podiam’. Podiam o q? Ora, simplesmente podiam. E ainda por cima, viscosos pois q o ‘podia’ deles era bem oleado nas máquinas q corriam sem barulho de metal ferrugento. Ela, q era uma potência. Uma geração de energia elétrica. Ela, q para descansar usava os vinhedos do seu sítio. Possuía tradições podres, mas de pé. E como ñ havia nenhum novo critério para sustentar as vagas e grandes esperanças, a pesada tradição ainda vigorava. Tradição de quê? De nada, se se quisesse apurar. Tinha a seu favor apenas o fato de q os habitantes tinham uma longa linhagem atrás de si, o q, apesar de plebéia, bastava para lhes dar uma certa pose de dignidade.

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Pensou assim, toda enovelada: ‘Ela q, sendo mulher, o q lhe parecia engraçado ser ou ñ ser, sabia q, se fosse homem, naturalmente seria banqueiro, coisa normal q acontece entre os ‘dela’, isto é, de sua classe social, à qual o marido, porém, alcançara por muito trabalho e q o classificava de ‘self-made man’, enquanto ela ñ era uma ‘self-made woman’. No fim, do longo pensamento, pareceu-lhe q – q ñ pensara em nada.
Um homem sem uma perna, agarrando-se em uma muleta, parou diante dela e disse:
_ Moça, me dá um dinheiro para eu comer?
‘Socorro!!!’ gritou-se para si mesma ao ver a enorme ferida na perna do homem. ‘Socorre-me, Deus’, disse baixinho.
Estava exposta àquele homem. Estava completamente exposta. Se tivesse marcado com ‘seu’ José na saída da Avenida Atlântica, o hotel onde ficava o cabeleireiro ñ permitiria q ‘essa gente’ se aproximasse. Mas na Avenida Copacabana tudo era possível: pessoas de toda espécie.. Pelo menos de espécie diferente da dela. ‘Da dela? Que espécie de ela era para ser ‘da dela?’
Ela – os outros. Mas mas a morte ñ nos separa, pensou de repente e seu rosto tomou o ar de uma máscara de beleza e ñ beleza de gente: sua cara por um momento se endureceu.
Pensamento do mendigo: ‘essa dona de cara pintada com estrelinhas douradas na testa, ou ñ me dá ou me dá muito pouco’. Ocorreu-lhe então, um pouco cansado: ‘ou dará quase nada.’
Ela estava espantada: como praticamente ñ andava na rua – era de carro de porta à porta – chegou a pensar: ele vai me matar? Estava atarantada e perguntou:
_Quanto é q se costuma dar?
_O q a pessoa pode dar e quer dar – respondeu o mendigo espantadíssimo.
Ela, q ñ pagava ao salão de beleza, o gerente deste mandava cada mês sua conta para a secretária de seu marido. ‘Marido’. Ela pensou: o marido o q faria com o mendigo? Sabia q: nada. Eles ñ fazem nada. E ela – ela era ‘eles’ também. Tudo o q pode dar? Podia dar o banco do marido, poderia lhe dar seu apartamento, sua casa de campo, suas jóias…
Mas alguma coisa q era uma avareza de todo o mundo, perguntou:
_Quinhentos cruzeiros basta? É só o q tenho.
O mendigo olhou-a espantado.
_ Está rindo de mi, moça?
_ Eu?? Ñ estou ñ, eu tenho mesmo os quinhentos na bolsa…
Abriu-a, tirou a nota e estendeu-a humildemente ao homem, quase lhe pedindo desculpas.
O homem perplexo.
E depois rindo, mostrando as gengivas quase vazias:
_Olhe – disse ele -, ou a senhora é muito boa ou ñ está bem da cabeça… Mas, aceito, ñ vá dizer depois q a roubei, ninguém vai me acreditar. Era melhor me dar trocado.
_Eu ñ tenho trocado, só tenho essa nota de quinhentos.
O homem pareceu assustar-se, disse qualquer coisa quase incompreensível por causa da má dicção de poucos dentes.
Enquanto isso a cabeça dele pensava: comida, comida, comida boa, dinheiro, dinheiro.
A cabeça dela era cheia de festas, festas, festas. Festejando o quê? Festejando a ferida alheia? Uma coisa os unia: ambos tinham uma vocação por dinheiro. O mendigo gastava tudo o q tinha, enquanto o marido de Carla, banqueiro, colecionava dinheiro. O ganha-pão era a Bolsa de Valores, e inflação, e lucro. O ganha-pão do mendigo era a redonda ferida aberta. E ainda por cima, devia ter medo de ficar curado, adivinhou ela, porque, se ficasse bom, ñ teria o q comer, isso Carla sabia: ‘quem ñ tem bom emprego depois de certa idade…’ Se fosse moço, poderia ser pintor de paredes. Como ñ era, investia na ferida grande em carne viva e purulenta. Ñ, a vida ñ era bonita.
Ela se encostou na parede e resolveu deliberadamente pensar. Era diferente porque ñ tinha o hábito e ela ñ sabia q pensamento era visão e compreensão e q ninguém podia se intimar assim: pense!
Bem. Mas acontece q resolver era um obstáculo. Pôs-se então a olhar para dentro de si e realmente começaram a acontecer. Só q tinha os pensamentos mais tolos. Assim: esse mendigo sabe inglês? Esse mendigo já comeu caviar, bebendo champanhe? Eram pensamentos tolos porque claramente sabia q o mendigo ñ sabia inglês, nem experimentara caviar e champanhe. Mas ñ pôde se impedir de ver nascer mais um pensamento absurdo: ele já fez esportes de inverno na Suíça?
Desesperou-se então. Desesperou-se tanto q lhe veio o pensamento feito de duas palavras apenas: ‘Justiça Social.’
Q morram todos os ricos! Seria a solução, pensou alegre. Mas – quem daria dinheiro aos pobres?&
De repente – de repente tudo parou. Os ônibus pararam, os carros pararam, os relógios pararam, as pessoas na rua imobilizaram-se – só seu coração batia, e para quê?
Viu q ñ sabia gerir o mundo. Era uma incapaz, com os cabelos negros e unhas compridas e vermelhas. Ela era isso: como numa fotografia colorida fora de foco. Fazia todos os dias a lista do q precisava ou queria fazer no dia seguinte – era desse modo q se ligara ao tempo vazio. Simplesmente ela ñ tinha o q fazer. Faziam tudo por ela. Até mesmo os dois filhos – pois bem, fora o marido q determinara q teriam dois…
‘Tem-se q fazer força para vencer na vida’, dissera-lhe o avô morto. Seria ela, por acaso, ‘vencedora’? Se vencer fosse estar em plena tarde clara na rua, a cara lambuzada de maquilagem e lantejoulas douradas… Isso era vencer? Q paciência tinha q ter consigo mesma. Q paciência tinha q ter para salvar a sua própria pequena vida. Salvar de quê? Do Julgamento? Mas quem julgava? Sentiu a boca inteiramente seca e a garganta em fogo – exatamente como quando tinha q se submeter a exames escolares. E ñ havia água! Sabe o q é isso – ñ haver água?
Quis pensar em outra coisa e esquecer o difícil momento presente. Então lembrou-se de frases de um livro póstumo de Eça de Queirós q havia estudado no ginásio: ‘O Lago de Tiberíade resplandeceu transparente, coberto de silêncio, mais azul q o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro, e de alvos terrenos por entre os palmares, sob o vôo das rolas.’
Sabia de cor porque, quando adolescente, era muito sensível a palavras e porque desejava para si mesma o destino de resplendor do lago de Tiberíade.
Teve uma vontade inesperadamente assassina: a de matar todos os mendigos do mundo! Somente para q ela, depois da matança, pudesse usufruir em paz seu extraordinário bem-estar.
Ñ. O mundo ñ sussurrava.
O mundo gri-ta-va!!! pela boca desdentada desse homem.
A jovem senhora do banqueiro pensou q ñ ia suportar a falta de maciez q se lhe jogavam no rosto tão bem maquilado.
E a festa? Como diria na festa, quando dançasse, como diria ao parceiro q a teria entre seus braços … O seguinte: olhe, o mendigo, também tem sexo, disse q tinha onze filhos. Ele ñ vai a reuniões sociais, ele ñ sai nas colunas do Ibrahim, ou do Zózimo, ele tem fome de pão e ñ de bolos, ele na verdade só deveria comer mingau pois ñ tem dentes para mastigar a carne… ‘Carne?’ Lembrou-se vagamente q a cozinheira dissera q o filet mignon subira de preço. Sim. Como poderia ela dançar? Só se fosse uma dança doida e macabra de mendigos.
Ñ, ela ñ era mulher de ter chiliques e fricotes e ir desmaiar ou se sentir mal. Como alguma de suas ‘coleguinhas’ de sociedade. Sorriu um pouco ao pensar em termos de ‘coleguinhas’. Colegas em quê? Em se vestir bem? Em dar jantares para 30, 40 pessoas?
Ela mesma aproveitando o jardim no verão q se extinguia dera uma recepção para quantos convidados? Ñ, ñ queria pensar nisso, lembrou-se (por que sem o mesmo prazer?) das mesas espalhadas sobre a relva, luz de vela… ‘luz de vela’? Pensou, mas estou doida? Eu caí num esquema? Num esquema de gente rica?
‘Antes de casar era de classe média, secretária do banqueiro com quem se casara e agora – agora luz de velas. Eu estou é brincando de viver – pensou – a vida ñ é isso.’
‘A beleza pode ser de uma grande ameaça.’ A extrema graça se confundiu com uma perplexidade e uma funda melancolia. ‘ A beleza assusta.’ ‘Se eu ñ fosse tão bonita teria tido outro destino’, pensou ajeitando as flores douradas sobre os negríssimos cabelos.
Ela uma vez vira uma amiga inteiramente de coração torcido e doído e doido de forte paixão. Então ñ quisera nunca a experimentar. Sempre tivera medo das coisas belas demais ou horríveis demais: é q ñ sabia em si como responder-lhes e se responderia se fosse igualmente bela ou igualmente horrível.
Estava assustada como quando vira o sorriso de Mona Lisa, ali, á sua mão no Louvre. Como se assustara com o homem da ferida ou com a ferida do homem.
Teve vontade de gritar para o mundo: ‘ Eu ñ sou ruim! Sou um produto nem sei de quê, como saber dessa miséria da alma?’
Para mudar de sentimento – pois q ela ñ os agüentava e já tinha vontade de, por desespero, dar um pontapé violento na ferida do mendigo -, para mudar de sentimentos, pensou: este é o meu segundo casamento, isto é, o marido anterior estava vivo.
Agora entendia por que se casara da primeira vez e estava em leilão: quem dá mais? Quem dá mais? Então está vendida. Sim, casara-se pela primeira vez com o homem q ‘dava mais’, ela o aceitara porque ele era rico e era um pouco acima dela em nível social. Vendera-se. E o segundo marido? Seu casamento estava findando, ele com duas amantes… e ela tudo suportando porque um rompimento seria escandaloso: seu nome era por demais citado nas colunas sociais. E voltaria ela a seu nome de solteira? Até habituar-se ao seu nome de solteira, ia demorar muito. Aliás, pensou rindo de si mesma, aliás ela aceitava este segundo porque ele lhe dava grande prestígio. Vendera-se às colunas sociais? Sim. Descobria isso agora. Se houvesse para ela um terceiro casamento – pois era bonita e rica -, se houvesse , com quem se casaria? Começou a rir um pouco histericamente porque pensara: o terceiro marido era o mendigo.
De repente perguntou ao mendigo:
_O senhor fala inglês?
O homem nem sequer sabia o q ela lhe perguntara. Mas, obrigado a responder pois a mulher já comprara-o com tanto dinheiro, saiu pela evasiva:
_Falo sim. Pois ñ estou falando agora mesmo com a senhora? Por quê? A senhora é surda? Então vou gritar: FALO.
Espantada pelos enormes gritos do homem, começou a suar frio. Tomava plena consciência de q até agora fingira q ñ havia os q passam fome, ñ falam nenhuma língua, e q havia multidões anônimas mendigando para sobreviver. Ela soubera sim, mas desviara a cabeça e tampara os olhos. Todos, mas todos – sabem e fingem q ñ sabem. E mesmo q ñ fingissem iam ter um mal-estar. Como ñ teriam? Ñ, nem isso teriam.
Ela era…Afinal de contas quem era ela?
Sem comentários, sobretudo porque a pergunta durou um átimo de segundo: pergunta e resposta ñ tinham sido pensamentos de cabeça, eram de corpo.
Eu sou o Diabo, pensou lembrando-se do q aprendera na infância. E o mendigo é Jesus. Mas – o q ele quer ñ é dinheiro; é amor, esse homem se perdeu da humanidade como eu também me perdi.
Quis forçar-se a entender o mundo e só conseguiu lembrar-se de fragmentos de frases ditas pelos amigos do marido: ‘ essas usinas ñ serão suficientes.’ Q usinas, santo Deus? As do Ministro Galhardo? Teria ele usinas? ‘ A energia elétrica… hidrelétrica’?
E a magia essencial de viver – onde estava agora? Em q canto do mundo? No homem sentado na esquina?
A mola do mundo é dinheiro? Fez-se ela a pergunta. Mas quis fingir q ñ era. Sentiu-se tão, tão rica q teve um mal-estar.
Pensamento do mendigo: ‘Essa mulher é doida ou roubou o dinheiro porque milionária ela ñ pode ser’, milionária era para ele apenas uma palavra e mesmo se nessa mulher ele quisesse encarnar uma milionária ñ poderia porque: onde já se viu milionária ficar parada de pé na rua, gente? Então pensou: ela é daquelas vagabundas q cobram caro de cada freguês e com certeza está cumprindo alguma promessa.
Depois.
Depois.
Silêncio.
Mas de repente aquele pensamento gritado:
_ Como é q eu nunca descobri q sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola mas mendigo o amor de meu marido q tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus q me achem bonita, alegre, e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha…
‘Há coisas q nos igualam’, pensou procurando desesperadamente outro ponto de igualdade. Veio de repente a resposta: eram iguais porque haviam nascido e ambos morreriam. Eram, pois, irmãos.
Teve vontade de dizer: olhe, homem, eu também sou uma pobre coitada, a única diferença é q sou rica. Eu…pensou com ferocidade, eu estou perto de desmoralizar o dinheiro ameaçando o crédito de meu marido na praça. Estou prestes a, de um momento para outro, me sentar no fio da calçada. Nascer foi minha pior desgraça. Tendo já pagado esse maldito acontecimento, sinto-me com direito a tudo.
Tinha medo. Mas de repente deu o grande pulo de sua vida: corajosamente sentou-se no chão. 
‘Vai ver q ela é comunista!’ pensou meio a meio o mendigo. ‘ E como comunista teria direito às suas jóias , seus apartamentos , sua riqueza e até os seus perfumes.’ 
Nunca mais seria a mesma pessoa. Ñ q jamais tivesse visto um mendigo. Mas – mesmo este era em hora errada, como levada de um empurrão e derramar por isso vinho tinto em branco vestido de renda. De repente sabia: esse mendigo era feito da mesma matéria q ela. Simplesmente isso. O ‘porque’ é q era diferente. No plano físico eles eram iguais. Quanto a ela, tinha uma cultura mediana, e ele ñ parecia saber de nada, nem quem era o presidente do Brasil. Ela, porém, tinha uma capacidade aguda de compreender. Será q estivera até agora com a inteligência embutida? Mas se ela já há pouco, q estivera em contato com uma ferida q pedia dinheiro para comer – passou a só pensar em dinheiro? Dinheiro esse q sempre fora óbvio para ela. E a ferida, ela nunca vira de tão perto…
_ A senhora está se sentindo mal?
_Ñ estou mal… mas ñ estou bem, ñ sei…
Pensou: o corpo é uma coisa q estando doente a gente o carrega. O mendigo se carrega a si mesmo.
_ Hoje no baile a senhora se recupera e tudo volta ao normal – disse José.
Realmente no baile ela reverdeceria seus elementos de atração e tudo voltaria ao normal.
Sentou-se no banco do carro refrigerado lançando antes de partir o último olhar àquele companheiro de hora e meia. Parecia-lhe difícil despedir-se dele, ele era agora o ‘eu’ alter ego, ele fazia parte para sempre de sua vida. Adeus. Estava sonhadora, distraída, de lábios entreabertos como se houvesse à beira deles uma palavra. Por um motivo q ela ñ saberia explicar – ele era verdadeiramente ela mesma. E assim, quando o motorista ligou o rádio, ouviu q o bacalhau produzia nove mil óvulos por ano. Ñ soube deduzir nada com essa frase, ela q estava precisando de um destino. Lembrou-se de q em adolescente procurara um destino e escolhera cantar. Como parte de sua educação, facilmente lhe arranjaram um bom professor. Mas cantava mal, ela mesma o sabia e seu pai, amante de óperas, fingira ñ notar q ela cantava mal. Mas houve um momento em q ela começou a chorar. O professor perplexo perguntara-lhe o q tinha.
_É q, é q eu tenho medo de, de, de, de cantar bem…
Mas você canta muito mal, dissera-lhe o professor.
_Também tenho medo, tenho medo também de cantar muito, muito, muito mais mal ainda. Maaaaal mal demais! – chorava ela e nunca teve mais nenhuma aula de canto. Essa história de procurar a arte para entender só lhe acontecera uma vez; depois mergulhara num esquecimento q só agora, aos trinta e cinco anos de idade, através da ferida, precisava ou cantar muito mal ou cantar muito bem – estava desnorteada. Há quanto tempo ñ ouvia a chamada música clássica porque esta poderia tirá-la do sono automático em q vivia. Eu – eu estou brincando de viver. No mês q vinha ia a New York e descobriu q essa ida era como uma nova mentira, como uma perplexidade. Ter uma ferida na perna – é uma realidade. E tudo na sua vida, desde quando havia nascido, tudo na sua vida fora macio como pulo de gato.
(No carro andando)
De repente pensou: nem me lembrei de perguntar o nome dele.

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