4 de novembro de 2011

Comentário do conto O Enfermeiro, de Machado de Assis.

Pertence à "segunda fase" – a fase realista - do escritor, esse conto figura, sem sombra de dúvidas, entre os melhores do autor e faz parte da coletânea Várias Histórias, publicada em 1896
O Enfermeiro é um típico conto machadiano, pejado de humanidade e de ironia do narrador homodiegético (narrador e personagem) nomeado –Procópio - que se mantém distanciado dos acontecimentos narrados, observando com a impiedosa lupa da crítica as imperfeições e mazelas das personagens. Estas são, como sempre, tipos representativos de determinado grupo social ou profissional, cuja condição moral é analisada com crua objetividade.
O narrador-personagem - Procópio - relata a sua própria história ocorrida na época em que, ainda jovem, tinha ido trabalhar como enfermeiro para um riquíssimo e rabugentíssimo senhor de nome Felisberto, que de tão exacerbadamente insuportável tornara impossível a vida dos enfermeiros anteriores, levando todos a pedirem demissão do espinhoso trabalho. Por causa desses sucessivos insucessos, o narrador é considerado pelo padre da pequena cidade do interior em que estão uma espécie de salvador, tratado a pão de ló, já que representava a última esperança.
De início o enfermeiro trata o moribundo com a maior paciência, o melhor dentre os que o antecederam, o que resulta na conquista da simpatia do velho. Todavia, a harmonia entre os dois teve curta duração: o doente enfadou-se de tanta paz e calmaria, começando a dar rédeas soltas ao seu medonho e maquiavélico gênio. Passou, então, a tratar rispidamente o enfermeiro.
Este suportou a sistemática grosseria do doente até que sua paciência atingiu seu limite, levando-o a pedir demissão. Para espanto do enfermeiro, o paciente abrandou, pediu-lhe desculpa e que tivesse tolerância para o seu mau gênio. Todavia, a paz durou pouco tempo, logo a torturante irritabilidade e grosseria retomaram, chegando ao auge no momento em que o velho jogou uma vasilha d’água na cabeça do enfermeiro. Este, enlouquecido pela dor, perdeu o controle e agrediu o doente, matando-o por esganamento.
Este é o ponto alto da narrativa, pois introduz a parte mais interessante da mesma, ou seja: assinala o momento no qual o narrador tomou consciência do ato extremo praticado e entra em uma crise de remorso torturante. Daí, sua preocupação passa a ser a construção de justificativas em sua mente que pudesse amenizar o excruciante peso que massacrava a sua consciência e, ao mesmo tempo, que conseguisse fazê-lo enganar a si mesmo, livrando-o do sentimento de culpa.
Acontece que o velho tinha um aneurisma em estágio avançadíssimo que iria lhe causar o óbito a qualquer momento. Todavia tal desculpa seria a salvação de sua consciência se um fato surpreendente, com intenso sabor de ironia, não tivesse ocorrido e provocado um sério transtorno em sua já delicada situação: o velho, em seu testamento, fizera do enfermeiro o único herdeiro. Tal revelação cai como uma bomba na mente culpada do protagonista, resultando em um grave conflito interior. Para livrar-se dos demônios do remorso ele cogita em doar a fortuna, depois passa a elogiar o velho insuportável em público, a contar histórias engraçadas sobre ele.
Com tal convicção e empenho começou a acreditar em sua inocência, que findou ilusoriamente a acreditando nela extirpando, assim, de sua consciência qualquer resquício de remorso. Nem lhe passou mais pela cabeça doar a herança. Quando muito, fez algumas doações, como forma de “arejar” a consciência.
No conto em questão, o homem é mais uma vez retratado por Machado como um ser corrompido, egoísta, ingrato, oportunista e preso a pulsões malignas. Tais características estão bem presentes tanto em Procópio quanto no Coronel Felisberto.
Note-se bem que ocorre uma mudança radical nos perfis psicológicos das duas personagens. O enfermeiro passa de vítima da estupidez do Coronel a seu assassinato. O Coronel, de velho endiabrado, agressivo e ingrato passa a ser visto como um homem generoso e dotado de um raro sentimento de gratidão, ao deixar para o seu enfermeiro toda a sua fortuna. Assim, ocorre uma evidente subversão de qualquer ação maniqueísta que destrói a crença de que existem dois tipos definidos de pessoas: as boas e as ruins, mostrando que ninguém é tão bom ou tão mau quanto possa aparentar, sendo possível a coexistência da bondade e da maldade numa mesma pessoa.
Machado de Assis mostrou, com a habilidade que lhe é peculiar, o perene conflito interior do ser humano, sempre dividido entre dois titãs em luta em seu interior: o bem e o mal.

Zenóbia Collares Moreira


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