2 de maio de 2011

Maria Judite de Carvalho- "A Noiva Inconsolável".


Ambas a tinham beijado, abraçado, lamentado sinceramente, com palavras trêmulas e lacrimejantes, muito sentidas: “Coitada, mas que pouca sorte a tua!” – “Oh filha, eu, quando soube, fiquei varada, nem queria acreditar...” – “Mas como é possível, como é possível?” Queriam saber pormenores. Como fora, afinal de contas? Que acontecera? O jornal explicava tão mal, a notícia era tão pouco clara... E Joana ia-se repetindo, incessantemente, no mesmo metal de voz cansado e igual. Ele telefonara-lhe na antevéspera, dissera-lhe que no dia seguinte – ontem- tencionava ir com amigos à praia, ao fim da tarde, quando saísse do escritório. “Vamos num pulo a Carcavelos dar um mergulho.” Ela parece que adivinhava, um pressentimento, não é? Tinha feito tudo para o dissuadir. Mas ele teimava: que estava combinado, e isto e aquilo. Tinha ido. Não sabia mais nada. Ninguém sabia mais nada.
“Era a morte a chamá-lo”
“Era...”
“O nosso destino está marcado, filha. Digam o que disserem. Se ele não tivesse ido nadar para Carcavelos, acontecia-lhe qualquer outra coisa. Ficava atropelado, por exemplo. O dia era ontem.”
“O dia era ontem. O nosso quando será?”
Houve um breve silêncio cheio de perguntas. A Inês, uma morena muito pintada, disse, levantando-se, com um suspiro:
“Tenho que ir indo. Não quis deixar de te dar um abraço, nas agora tenho que ir indo. O dentista marcou-me hora às cinco e meia. Já não tenho muito tempo”.
A outra, que estava sentada perto da janela, perguntou se o dentista ficava na Baixa. Então ia comprar botões. “Tu desculpas, sim? Mas é que me fazem tanta falta!”
Houve novamente beijos muito estalados e pedidos, melhor, exortações à resignação. Agora já não havia nada a fazer. Era preciso ter coragem, encarar as coisas de frente. A Inês ia ainda dizer que as lágrimas não serviam de nada, mas deteve-se a tempo quando verificou que Joana não chorava, olhava-as de frente com o rosto seco e a expressão de todos os dias. De todos os dias? Bem, talvez não fosse exatamente assim. A expressão dela não era a de todos os dias, era mesmo uma expressão nova, diferente de todas as suas expressões. A Guida, porém, e a Inês não compreenderam o seu significado. Eram raparigas simples, que mão viam muito para além das coisas.
A porta fechou-se devagar e as duas começaram a descer a escada. Um sol de fim de tarde, amarelado e sujo, atravessava com dificuldade a clarabóia.
“Coitada”, disse Guida abrindo a mala para se ver ao espelho, “não se pode dizer que tenha tidomuita sorte. Tanto se ralou para arranjar um homem e ele morre-lhe assim do pé para a mão. E logo afogado, que horror”!
Sempre tive um medo horrível de morrer afogada”, declarou Inês. “Bem, eu sei nadar... mas a verdade é que ele também sabia. Não sei porquê, mas o fundo do mar... Aqueles bichos horríveis, moréias, não é? Que parecem cobras. No aquário se Algés havia duas moréias, de olhos muito vivos, a olharem fixos para mim. Tinha pesadelos sempre que lá ia. Quando era miúda, claro. Depois nunca mais lá voltei. Já devem ter morrido. Quanto tempo durará uma moréia?”
A outra riu.
“Sei lá! Em todo o caso no mar de Carcavelos não deve haver moréias. Que... bem, tens razão...A gente não sabe onde ele está, por onde anda. Não apareceu... Ainda não deu à costa. Quandio isso acontecer, deve estar... Meu Deus, não vou comer peixe durante muito tempo.”
Teve um arrepio. “Coitada da Joana, nunca mais arranja outro. Com uma cara daquelas... Ouve cá, tu achas que ele casava mesmo?
“Levava-lhe jeito. Até tinham comprado uma mobília de quarto... Já vês...”
“Sim, claro, mas é esquisito, não achas?”
“É. Há muita coisa esquisita por esse mundo. Olha, eu, por exemplo, não tenho hora marcada no dentista. O Zé deve estar à minha espera na paragem do autocarro.”
A outra foi atacada de riso.
“Eu também não vou à Baixa comprar botões. Vou à segunda matinée do Tivoli. E tenho que me meter num táxi, senão chego tarde.”
Separaram-se alegremente. No fundo, eram excelentes raparigas. Não tinham querido falar em namoros e cinemas, porque tinham o sentido do apropósito.
***
Joana estava só. As amigas acabavam de sair e os pais e o irmão ainda não tinham chegado a casa. A mãe não se demorava com certeza, fora comprar-lhe uma blusa e meias pretas. Nem um beijo lhe dera nesse dia, nem uma plavra de ternura. Não agredia, isso não, sempre era uma vantagem que tinha sobre os outros, Ficava-se hirta e quieta, como que fechada por dentro no seu restrito mundo hermético. Era uma boa esposa, uma boa mãe; As noites que tinha perdido, as noites que continuava a perder sempre que alguém estava doente! Não lhe podiam pedir mais , não lhe pediam mais. O irmão, esseentrava e saia, nunca parava em casa. Rapazes, não é verdade? Agora é que era aproveitar... Quanto ao pai, chamava a todas as coisas que não fossem inteiramente transparentes, àquelas que lhe parecessem ligeiramente turvas, complicações de gente histérica. E falava sempre com ar definitivo de quem tudo pode julgar porque tudo sabe.
Filha deles? Irmã do irmão? Quando pensava nisso parecia-lhe ter nascido de si própria, sem laços que a unissem a ninguém. E, no entanto, como esses laços lhe faziam falta! Uma semente vinda sabe-se lá donde e que o vento por acaso ali tivesse largado. Sentia-se longe da família, das suas pequens ambições, das suas invejas mesquinhas. “Sou o homem de confiança do Rebelo”, dizia o irmão. “Vou fazer uma limpeza. O Rebelo, coitado, que é bom homem nas não deve nada à inteligência, tem sido ignobilmente enganado por aquela corja. Agora vai entrar tudo nos eixos, olá se vai. Eles conhecem-me, sabem que corto a direito”. O pai falava do cargo de sub-chefe que fora dado ao Silva, um incapaz, um analfabeto. “Era um lugar para mim, todos dizem que era um lugar para mim.” O irmão tinha um sorriso superior, que a mãe aplaudia em silêncio: “O pai é um ingênuo. Teve tudo na mão, mas não soube aproveitar. Agora é tarde, claro. Por isso eu...”
No foro íntimo, Joana tratava-os pelos nomes próprios, respondia-lhe com o seu silêncio, com o livro que lia durante as refeições para não ser obrigada a ouvi-los, para se recusar a ouvi-los. Não os detestava, nem isso, simplesmente eles não a interessavam. Sentia-se longe, sozinha no mundo, sozinha em parte nenhuma. Era tudo.
Ela e o seu pequeno rosto ingrato, de coelho, em seus óculos espessos, de muitas dioptrias, a silhuetas pesada e sem graça. Outras tantas grades a isolarem-na do mundo exterior, a taparem a entrada a quem viesse. Mas ninguém vinha. E ela tão só, coitada. Via-se no espelho, estudava o novo penteado à Farah Diba, experimentava um creme de que se diziam maravilhas, no último número da Elle. Mas a carinha de coelho era mais forte do que tudo. Estava sempre em primeiro plano.
Depois ele um dia aparecera. Bonito rapaz, simpático em todo o caso. Nunca se lhe pusera o problema de saber se o amava verdadeiramente. Mas havia aquele precisar dos olhos dele a olharem-na, de algumas palavras que nunca ouvira antes e ele lhe dizia, da promessa das suas mãos.
A mãe, quando soubera do namoro, sentira-se preocupada. Dir-se-ia que procurava em volta, sem a achar, a razão – porque alguma devia existir – para aquele homem, o primeiro, se interessar por Joana. O pai limitara-se a dizer, sem levantar os olhos do jornal, que já não era sem tempo, e tinha perguntado logo a seguir, na mesma emissão de voz, se sabia quando ele ganhava. Quanto ao irmão, olhava-a com um espanto quase insultuoso e dera-lhe de conselho que o agarrasse bem e fizesse por casar depressa.
De princípio ele queria casar já e tinham mesmo comprado aquela mobília com as economias de ambos. Depois começara a falar numa situação muito vantajosa que lhe tinham oferecido na África. Por fim deixara de se referir a ambas as coisas. Era raro aparecer e telefonava-lhe mais à pressa, tinha sempre trabalho urgente a fazer, “tu desculpas-me. Sim? Amanhã te explico”. Não explicava, porque nunca aparecia aamanhã, só dias depois e então tinha-me esquecido, era natural, com tanto em que pensar. E até parecia esquisito ela ir-lhe falar de coisas já tão passadas.
Mas, a pouco e pouco, as grades que havia meses tinham caído apareciam de novo à sua volta. Via outra vez coisas perdidas e reencontradas. A sua carinha de coelho, por exemplo, trinta anos, o seu corpo desengraçado, ouvia a sua foz a fazer a si própria perguntas a que se recusava a dar resposta. Tinha uma grande vontade de chorar e todas as manhãs pensava, aterrorizada, se seria nesse dia.
Na antevéspera ele telefonara-lhe a dizer aquilo. Joana pedira-lhe que não fosse. Porque não a vinha ver? Tinham tanto em que falar! Havia já quase uma semana que não aparecia. “Uma semana? Pode lá ser! Estás a brincar...” Não estava. Uma semana, “Meu Deus, como o tempo passa!” exclamava ele com convicção. Meu Deus, como o tempo é longo, pensava ela. Como o tempo custa a passar!
Depois, nessa manhã, lera a notícia no jornal. Vinha o retrato dele, um retrato antigo que ela não conhecia. Mas havia tantas coisas que ela não conhecia e tantas pessoas... Pessoas a falar e ela a ouvi-las e a responder, a ter opiniões. Quais? Que teria dito? O seu atual pensamento flutuava levemente numa atmosfera mansa, batia ao de leve as asas, aflorava as coisas. Toda a angústia desaparecera. Já não receava nada, já não ia acordar todas as manhãs a pensar que talvez tudo fosse terminar antes da noite. Sentia essa calma no rosto que não via, nas mãos quietas, na voz que lhe saía direta, quase rígida. A serenidade que ele lhe legara! Apetecia-lhe sorrir mesmo sem estar alegre, sorrir precisamente porque estava triste. Sorrir à mãe quando ela entrasse com os trapos pretos que nunca mais havia de despir, sorrir ao pai, ao irmão, às amigas que tinham acabado de descer a escada, sorrir a toda a gente. Era de súbito outra pessoa. A noiva inconsolável do homem que morrera.

Maria Judite de Carvalhio. As palavras poupadas, Ed. Seara Nova, 3ª. Edição, p. 120-127.

Comentário do conto a seguir.
 

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