5 de novembro de 2010

Soeiro Pereira Gomes, A estrada do meu destino.



Tudo me foi estranho desde o primeiro dia. O chefe, rotundo e severo, indicou-me o lugar no escritório. Apresentou-me: - O novo empregado, senhor João da Silva.

Os outros tomaram ares solenes nas secretárias, como reis em trono e miraram-me. Adivinhei-lhes o pensamento: um concorrente. Enfático, o chefe pronunciou uma a um seus nomes pesados de gerações ilustres. Curvaram por favor o tronco altivo, sem que os braços se afastassem dos braços das cadeiras. Seguros ao lugar, não fosse eu pretendê-lo.
Depois, fiquei só, repassado de silêncio e angústia. Os outros fecharam a sete chaves as portas brasonadas das suas vidas. Olhei furtivamente a sala bafienta, pejada de papéis e mesas alinhadas, monotonamente iguais. Do subconsciente, afloraram-me impressões recalcadas.Era uma manhã nevoenta de Outubro, e eu - malas dos livros às costas a pesar como chumbo - arrastava na estrada os pés sonâmbulos, para não ouvir os estalidos irritantes das folhas secas dos plátanos. Meu pai deixava-me à porta da escola.-Faz-te homem – dissera. –Aprende a ser alguém na vida.Alguém... João da Silva, o novo empregado. Eu estava outra vez na sala, entre mesas alinhadas e caras estranhas, ignorante e tímido.- Seu Silva, tem de melhorar essa caligrafia.
O mestre – pensei, à espera que a vara me caísse sobre os dedos. Mas as palavras doeram mais. Aos olhares trocistas dos outros, juntou-se o inquisitorial do chefe.- Má letra, seu Silva.Se meu pai fosse vivo... Ele que sonhava ver-me o doutor da família, dizia que eu tinha letra de médico. Enganou-se comigo e com várias outras letras que lhe arruinaram a loja. Más letras, certamente. 
Quase à porta da Universidade, retrocedi em busca doutra estrada mais longa e, por isso, mais ruim. E fiquei na encruzilha da da Vila, receoso e pedinchão, a bater a todas as portas. Por fim, entrei para ali, de fato roçado e estômago vazio. Porta da salvação – julguei. De manhã, o chefe aparecia no escritório, impante, pedagogo. Sabia. Vinham-me à idéia lições inteiras que me deram foros de bom aluno. Sempre notas altas em Ciências... Esforçava-me por gritar: “Fiz o 6º ano do Liceu. – Sei mais do que o senhor. Mas calava-me e ouvia.- Quem recebe, deve – seu Silva.Aquilo era piada aos duzentos escudos que eu recebia no fim do mês. Os outros riam, à sucapa. Que vergonha! Enervado, mais errava e confundia. E todo o dia o mesmo verrinar obcecante:-Raspe, seu Silva... emende!

O pêndulo do relógio a embalar o tempo (cada minuto, uma hora de angústia). O toque das 5 horas punha fim ao suplício. “Até amanhã – diziam. “Até um dia” –pensava eu. Recordava o Liceu à hora buliçosa da saída – “tu cá, tu lá” com os amigos; capa e batina destacando a condição; passo firme a caminho da porta certa. E partia sozinho, alheio à liberdade retomada, fato ruço no fio e passo trôpego a caminho da porta incerta.

À noite deambulava pelas ruas. Nos cafés, não entrava com vergonha dos antigos companheiros, já doutores. Decerto, faria vista grossa. Mas o meu fato dava nas vistas... Certa vez, entrei numa taberna. Gente maltrapilha em volta de mesas toscas, a beber e fumar.- Um copo de vinho branco – pedi a medo.Desconfiados, formaram grupos sussurrantes, que me olhavam de alto a baixo. Adivinhei-lhes as palavras: um intruso. E retirei-me consternado. O meu fato dava nas vistas...

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Agora, tudo me parece um sonho. O suco gástrico corroeu o estômago e as idéias. No entanto, a tigela de sopa que os cantoneiros repartiam comigo identificou-me com o mundo. Recordo. Eu estava aqui estirado na berna da estrada, à hora da sesta, e o sol entrava-me nos rasgões das calças, suspensas da gravata que tirei do pescoço. Um lugar ao sol. Há um mês que deixara o escritório, de regresso à encruzilhada. Já não era o Silva – silva rasteira entre cedros de antanho. Encontrara-me. Os cantoneiros a meu lado levantaram-se de enxada ao ombro.- Então, camarada? - perguntaram, sorridentes.

Olhei a estrada longa, reverberando ao sol. Estrada do meu destino e de todos os silvas que têm má letra. Peguei na enxada e segui-os.

(Soeiro Pereira Gomes)

COMENTÁRIO:
Comunista convicto, Soeiro Pereira Gomes revela, em seus contos, seu empenho em produzir uma arte alicerçada na concepção maxista-leninista do mundo, da sociedade e dos homens, com especial foco nas contradições sociais, na luta de classes, na luta entre exploradores e explorados. No conto “A Estrada do Meu Destino”, o autor faz um paralelo entre o mundo burguês e o mundo do proletariado, conseguindo pôr em relevo as diferenças essenciais entre a negatividade do primeiro e a positividade do segundo. A crítica mordaz aos valores e às atitudes dos representantes da burguesia é evidenciada no inusitado destino final dado à personagem João da Silva.Há no escritor e no militante comunista, Soeiro P. Gomes, o mesmo esforço para se libertar das “aparências” que, por um lado, deformam a realidade ou que dela mostram a face superficial e, por outro lado, das apa- rências que nós mesmos introduzimos na realidade, tomando por esta os nossos sonhos e desejos. No caso da personagem João da Silva, foi seu pai quem idealizou um futuro socialmente ascendente para ele, imaginando que ele seria um médico, seria um “doutor”, seria “alguém” na vida, subiria na escala social.