3 de novembro de 2010

Comentário do conto Perdoando Deus, de Clarice Lispector

Perdoando Deus chama a atenção não apenas pela exigüidade da ação, como por desenvolver-se em torno de uma só personagem que acumula, também, a função de narradora. Toda a ação é limitada a um passeio da personagem pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana, ao fato de pisar em um rato morto e à sua corrida até ao outro quarteirão onde, transtornada, se encosta a um poste. Estes movimentos ensejam as reflexões da protagonista bem como o início de um intenso e rico monólogo interior acerca das suas relações com a existência e com Deus.
A narradora abre a sua narrativa informando sobre seu estado de espírito, sobre o prazer que lhe dá o passeio despreocupado, fruindo o momento e tudo a sua volta, com a alma leve e despreocupada, satisfeita e invadida por uma sensação de liberdade e de completude.   
Um sentimento desconhecido insinua-se em seu interior, uma ternura, um afeto nunca antes sentidos, oriundos da inusitada idéia de que era a mãe de Deus e de tudo o que existe na Terra Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo.
Todavia, um fato exterior negativo rompe o clima de enlevo cósmico da protagonista, fazendo desmoronar toda a beleza e satisfação que experienciara: a súbita visão de um rato morto. Tumultuada e perplexa, ela corre. Revolta-se, fica indignada e pensa em vingar-se de Deus. "Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto."
Este fato, na medida em que interrompe todo o conjunto de sentimentos e sensações benéficos que se agasalhavam no interior da personagem, constitui o momento epifânico da narrativa, provocando uma mudança radical no estado de inefável leveza que lhe ia na alma. A visão do rato morto desconstrói sua felicidade anterior, arrastando-a para sentimentos absolutamente contrários: o “terror de viver”, o “pânico” e o “medo” desnorteantes:
“E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos”. (§3)
A surpresa, a perplexidade e o susto decorrentes da visão do rato morto, resultaram numa reação de revolta, decepção e raiva em relação a Deus, a grosseria do seu ato, tão oposto a tudo quanto a narradora sentira de puro e delicado.  Veio-lhe o ímpeto de vingança, logo atenuado pela certeza da sua impotência contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado a podia esmagar. A conseqüência do incidente foi o sentimento de estar distanciada de Deus: “Em mim é que eu não o via mais” (§5).
Todavia, o ela que faz é tentar, por meio de uma profunda reflexão, compreender a motivação de Deus para agir como agiu. É então que, no decurso desta, tem início um processo de auto-conhecimento e o consequente reconhecimento das suas próprias fraquezas, limitações. O resultado foi das elucubrações da narradora foi a sua reconciliação com Deus. Todavia, o Deus que resgatou já não é o mesmo ser perfeito, sereno e distante do início, mas sim um Deus concebido a partir de um ponto de vista mais humano a quem ama com lucidez
Daí, passa a tecer esclarecedoras reflexões sobre si mesma, sobre as suas idéias errôneas e impressões equivocadas sobre sua própria pessoa e sobre a sua forma fantasiosa decriar uma imagem de Deus. A narradora percebeu então que a sensação que tivera era equivocada, concluindo que estivera amando um mundo que não existe: “no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. E porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele.(...) Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza?”
A natureza humana é também posta em xeque, com o reconhecimento da personagem de que ela também é capaz de desejar a morte de um rato, que ela se enganara ao se julgar capaz de sentir apenas “amor inocente”, pois, na verdade, apenas limitou-se a conter os crimes que não cometeu.  Ao ver-se negando uma parte de si mesma compreende a fragilidade dos elementos no quais pautou as suas relações com a vida e sua visão de Deus. Dá-se conta de que é possível ser Deus uma criação do seu imaginário, quiçá uma mera projeção do que ela não consegue aceitar nela própria. Prossegue em sua caminhada em aflitivo solilóquio, tomada de tristeza, concluindo a sua narrativa com a  certeza de que enquanto inventasse, Ele não existiria.