28 de outubro de 2010

José C. Pires: Uma simples flor em teus cabelos claros

«Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacudindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse. Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira atéentão, çadase sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre,varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.» 
«Marcaste o despertador?»
«Hã?»
«O despertador, Quim. Para que horas o puseste?»
«...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido,  despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...»
 «Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?»
«O despertador?»
«Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força,caramba.» 
«Pronto. Estás satisfeita?» 
«Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.» 
«-Mais um mergulho - pedia a rapariga.  A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço; - Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda. 
Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga. 
- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. 
- Vamo-nos vestir? 
Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilanteda jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro. Paulo apertou mansamente a mão da companheira; 
- Embora? 
- Embora - respondeu ela. E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.» 
«Quim... » «Outra vez?» «Desculpa, era só para baixares o candeeiro. Que maçada, estou a ver que tenho de tomar outro comprimido.» 
«Lê um bocado, experimenta.» 
«Não vale de nada, filho. Tenho a impressão de que estes comprimidos já não fazem efeito. Talvez mudando de droga... É isso, preciso de mudar de droga.» 
«- Tão bom, Paulo. Não está tão bom? 
- Está óptimo. Está um tempo espantoso. Maria continuava sentada na areia. Com os braços envolvendo as 
pernas e apertando as faces contra os joelhos, fitava o nada, a brancura que havia entre ela e o mar, e 
os olhos iam-se-lhe carregando de brilho. 
- Tão bom - repetia.  
- Sim, mas temos que ir. Com o cair da tarde a névoa desmanchava-se pouco a pouco. Ficava unicamente a cobrir o mar, a separá-lo de terra como uma muralha apagada, e, de surpresa, as dunas e o pinhal da costa  surgiam numa claridade humilde e entristecida. 
Já de pé, Paulo avistava ao longe a janela iluminada do restaurante. 
- O homem deve estar à nossa espera 
- disse ele. - Ainda não tens apetite? - E tu, tens? - Uma fome de tubarão. - Então também eu tenho, Paulo. 
- Ora essa? - Tenho, pois. Hoje sinto tudo o que tu sentes. Palavra. 
«Se isto tem algum jeito. Qualquer dia já não há comprimidos que me cheguem, meu Deus.» «Faço ideia, com essa mania de emagrecer... » 
«Não, filho. O emagrecer não é para aqui chamado. Se não consigo dormir, é por outras razões. Olha, talvez seja por andar para aqui sozinha a moer arrelias, sem ter com quem desabafar. Isso, agora viras-me as costas. Nem calculas a inveja que me fazes.»
 «Pois.» 
«Mas sim, fazes-me uma inveja danada. Contigo não há complicações que te toquem. Voltas as costas e ficas positivamente nas calmas. Invejo-te, Quim. Não calculas como eu te invejo. Não acreditas?» 
«Acredito, que remédio tenho eu?» 
«Que remédio tenho eu... É espantoso. No fim de contas ainda ficas por mártir. E eu? Qual é o meu remédio, já pensaste? Envelhecer estupidamente. Aí tens o meu remédio.» 
«Partiram às gargalhadas. À medida que se afastavam do mar, a areia, sempre mais seca e solta, retardava-lhes o passo e, é curioso, sentiam as noite abater-se sobre eles. Sentiam-na vir, muito rápida, e entretanto distinguiam cada vez melhor, as piteiras encravadas nas dunas, a princípio pequenas como galhos secos e logo depois maiores do que lhes tinham parecido à chegada. E ainda as manchas esfarrapadas dos chorões rastejando pelas ribas arenosas, o restaurante ermo, as traves; de madeira roídas pela maresia e, cá fora, as cadeiras de verga, que o vento tombara, soterradas  na areia. 
- O mar nunca aqui chega - tinha dito o dono da casa. - Quando é das águas vivas, berra lá fora como um danado. Mas aqui, Senhor. Aqui não tem ele licença de chegar.» 
«A verdade é que são quase duas horas e amanhã não sei como vai ser para me levantar. Escuta...» 
«Que é?»          
«Não estás a ouvir passos?» 
«Passos?» 
«Sim. Parecia mesmo gente lá dentro, na sala. Se soubesses os sustos que apanho quando estou com insónias. A Nanda lá nisso é um exagero, eu nunca seria capaz de te acordar...mas, enfim, ela lá sabe. O que é certo é que se entendem à maravilha um com o outro. E isso, Quim, apesar de ser a tal tipa, que tu dizes. Também, ainda estou para ter uma amiga que na tua boca não seja uma tipa ou uma galinha.»
[...]
“A rapariga pôs-se séria de repente.”  Ele tem gestos nervosos:
– É estranho, mas não sei como te hei-de dizer...
– Oh, não digas, Paulo.
Só nesse momento a pôde ver com clareza. Estava a sorrir, o nariz tremendo ao de leve.
– Não é preciso – murmurava ela então. 
– Eu também tenho pensado nisso muitas vezes. Talvez, sei lá, talvez eu mesma to dissesse. 
[...]
“Acabaste, Quim?”
“Sim, acabei.”
“E é bom, o livro?”
“É uma história de dois jovens apaixonados. Dois tipos novos.”
“Contas-ma Quim? É capaz de contar a história à sua mulherzinha?”
“Ora, quase não tem que contar. É um rapaz que está na praia com uma rapariga.”
“E depois? Conta, não sejas chato.”
“Depois vão tomar banho. Á noitinha, quando o sol está mesmo a desaparecer”.
“À noitinha? Tu não estás bom da cabeça, Quim.”
“Verdade. À noitinha.”
“Mas isso é só nos filmes dos milionários, lá nos mares do sul. Só aí é que há banhos à noite. Ou nas piscinas, quando está tudo bêbedo.” 
“Não, estes não estavam bêbedos nem eram milionários.”
“Eram malucos. Ou então faziam isso para armar. Não me queres convencer que acreditas numa coisa dessas.”
“Claro que acredito. Porque não?”
“Pobre Quim. O meu Quim deu agora em maluquinho. Deu em maluquinho, não deu?”
“Quieta, Lisa.”
“Deu em maluquinho, pois. Mas eu sou a mulherzinha dele e vou guardá-lo muito bem guardado para que não fuja para a praia como os maluquinhos. Não é?”
“Quieta, Lisa.”
Arrumou o livro na mesa-de-cabeceira e apagou a luz.
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José Cardoso Pires,  Jogos de Azar,  Lisboa, 
Publicações Dom Quixote, 1999 (7ª ed.). 

Comentário do conto de José Cardoso Pires.

José Cardoso Pires figura entre os mais talentosos ficcionistas da literatura portuguesa. Seus romances e contos trazem a marca da sua experiência pessoal, condensam em cada página as suas inquietações, a imagem que se faz do homem e da vida. Trata-se de uma obra que não se inscreve, definitivamente, em nenhum grupo ou gênero literário português. A partir da publicação do seu  livro de estréia “Os Caminheiros e Outros Contos” (1949), até o último, “Lisboa, Livro de Bordo ” (1997), o escritor experimentou várias tendências literárias, inclusive o neo-realismo, o qual procurou seguir por um tempo mais prolongado. José Cardoso Pires morreu em Lisboa, em 26 de outubro de 1998. Em vida, foi galardoado com vários prêmios, dentre os quais o Prêmio Pessoa de 1997. O conto “Uma simples flor nos teus cabelos” é considerado um dentre os melhores do autor.
Neste conto,  o leitor é confrontado com a presença de duas seqüências narrativas que se alternam, conferindo um toque de originalidade à trama. Uma das narrativas faz parte de um livro que a personagem masculina lê. É protagonizada pelo casal Paulo e Maria, e se alterna com a história principal, vivida pelo casal Quim e Lisa. Portanto, são abertos dois espaços na narrativa: um, transcrito em itálico e narrado com certo toque de romantismo e poeticidade, é caracterizado pela amplitude do espaço de uma bela praia, iluminada pela luz do fim da tarde. Este espaço idílico abriga um casal enamorado, Paulo e Maria – que abre um campo dinâmico de beleza, de alegria, de leveza, de vibrante entusiasmo pela vida, dentro do conto. 
O outro, escrito em letras redondas em linguagem seca e contida, é um  espaço fechado, noturno, estático, restrito ao quarto de um casal – Quim e Lisa - que, nele, sustenta um estéril diálogo.
Quim e Lisa, marido e mulher, estão deitados em sua cama, preparados para dormir: ela, com insônia, carente e agastada, insiste em desviar o marido da leitura, tagarelando sobre assuntos corriqueiros, fazendo perguntas desnecessárias ou queixas com o intuito de fazê-lo voltar-se para ela. Ele, engolfado na leitura de um livro e desinteressado em relação à conversa superficial de Lisa, trata de responder laconicamente aos seus reiterados apelos, mostrando-se mais interessado em fruir, na leitura do livro, as sedutoras peripécias de um casal romanticamente enleado numa relação amorosa perfeita. Tal atitude de indiferença denota a impossibilidade de comunicação, de diálogo e de sintonia entre Quim e Lisa. 
Temos, portanto, uma história fictícia lida pela personagem masculina – Quim-, que se alterna com a história real que este vive com a mulher Lisa, através de sucessivos cortes nos dois fios narrativos em alternância. A partir daí, é inevitável a comparação entre os dois casais, ensejada pela técnica de encaixe de uma segunda história dentro da história principal.
A atitude alheada dele deve-se à história que está lendo, na medida em que esta lhe proporciona uma fuga, uma espécie de “parênteses” na realidade, capaz de isolá-lo da mesmice do mundo opaco em que vive. Na ficção, ele encontra o desafogo, a leveza, a chance de escapar por momentos da realidade tediosa que o rodeia, mergulhando noutra história palpitante de vida, de emoções e de sonhos que a leitura lhe oferece.A história que tanto despertou o interesse de Quim é muito simples: as personagens principais, Paulo e Maria, estão hospedados numa estalagem de praia, num final de inverno, ao entardecer, vivendo momentos deleitosos de cumplicidade, afeto, alegria, paz e entendimento. Os dois brincam, riem, correm pelo areal, saltam poças d´água, deliciam-se com cada minuto que fruem juntos, jantam à luz de uma vela e trocam gestos de afeto, descontraídos e felizes. Vivem, portanto, um tipo de relação cúmplice e permeada de alegrias, afeto e entendimento que, comparada com a mesmice da desgastada relação de Quim com a mulher, muito contribui para pôr em evidência a tediosa rotina do seu casamento, no qual faltam atrativos, sintonia e entendimento, enquanto sobejam o cansaço, a irritação e o aborrecimento, caracterizando o desencontro dos seus dissonantes mundos, agravado pela corrosiva rotina do dia-a-dia do casal.
Os casais das duas histórias vivem vidas opostas. A vida de Quim e Lisa configura-se como uma representação da vida real, enquanto a do outro casal tipifica a vida idealizada, traçada dentro das ilimitadas possibilidades da ficção, bem próxima dos sonhos. Os contrastes entre as duas formas de vida são fundamentais: A história do casal Quim e Lisa, transcorrida no mundo real, é racional, metódica, rotineira, tediosa, espartilhada em pressupostos sociais previsíveis e preestabelecidos. A história de Paulo e Maria é uma projeção dos desejos de muitas pessoas sonhadoras, de índole romântica, avessas à rotina e à mesmice do quotidiano, pessoas que ousam fruir a liberdade e as coisas simples da existência.   
Vale salientar que em todo o desenrolar da trama, fica bem evidenciada a solidão, a amargura, a carência e o conseqüente agastamento de Lisa, decorrente das próprias circunstâncias que cercam sua vida em um casamento em falência, no qual já não há troca de afeto. Todavia, ela não vislumbra fazer mudanças, tornou-se uma escrava das suas atividades rotineiras, vive presa ao seu estreito mundinho convencional. Em sua vida não há espaço aberto ao sonho, à aventura, à outra forma de vida.  Daí não admitir como normal a possibilidade de vivenciar outra realidade, como disse ao marido, após ouvir o relato da história de Paulo e Maria: "Mas isso é só nos filmes dos milionários". "Não me queres convencer que acreditas numa coisa dessas". 
O marido diz que acredita, ouvindo de Lisa o que não gostaria que ela dissesse: "Deu em maluquinho, não deu?" Como resposta, irritado  ele manda que ela “fique quieta”. Este casal, decerto, está muito próximo da separação. Vivem em mundos opostos. Todavia, o que mais interessa nesse conto não são as duas histórias em si mesmas, mas sim a condição existencial das personagens de cada história, as circunstâncias em que vivem e convivem, a denúncia do ser humano esvaziado, desgastado por seu cotidiano corrosivo e alienante.

27 de outubro de 2010

A Causa Secreta, conto de Machado de Assis.

Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará.
Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço. Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação. 
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois.
Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade.
Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele. A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele.
Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.
Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.- Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens.
Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.
- Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.
- Conhecia-o antes? perguntou Garcia.
- Não, nunca o vi. Quem é?
- É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.
- Não sei quem é.
Médico e subdelegado vieram daí a pouco fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto. 



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Comentário de A Causa Secreta, conto de Machado de Assis

A Causa secreta é um dos melhores contos de Machado de Assis e, quiçá, um dos poucos em que faz incursões na área do Naturalismo, devassando as zonas tortuosas e aviltantes das perversões do homem, trazendo à luz a questão do sadismo, abordado com riqueza de detalhes.
Machado elabora uma observação profunda sobre o lado obscuro e abjeto dos sentimentos humanos, acompanhada por uma crítica mordaz à caridade hipócrita.
No conto podemos marcar algumas cenas bastante cruas que revelam o prazer de Fortunato ao presenciar a dor alheia ou ao infringir o sofrimento no outro, considerado por ele como um objeto: o gosto do protagonista pelas cenas sangrentas no teatro, retirando-se nas farsas e representações leves.
Duas outras cenas são marcantes: tinha prazer em dar bengalada em cães que dormiam na calçada, quando vinha dos espetáculos, além da frustração que sentia quando algum doente sobrevivia, como aconteceu com o Gouveia.
A desumana cena do rato sintetiza o alto grau de perversão de Fortunato. Este, ao descobrir que estava sendo observado por Garcia, passa a encenar um jogo do faz-de-conta, fingindo sentir ódio pelo animal, que lhe roubara um papel importante, para que o amigo não o considerasse frio e perverso.
Outra questão colocada no conto é que ao ver as cenas violentas no teatro, projetava nelas o mesmo comportamento perverso que costumava manifestar com os seus pacientes.
O mesmo comportamento é repetido no caso do rato: a simulação do sentimento de ódio pelo roedor equivale à indiferença com que tratou Gouveia, quando este o procurou para agradecer pela "dedicação".
No final da narrativa, a manifestação de sadismo é chocante. Fortunato, ao surpreender Garcia beijando Maria Luísa, assume, sem nenhum pudor, o torpe papel de observador ativo, postado à distância, apreciando a cena, sem o mínimo sentimento de ciúme ou de indignação com a possibilidade traição do amigo. Ao contrário disto, Fortunato fruiu prazerosamente aquela dor “deliciosamente longa”, gozando aquele momento de intenso prazer.
De todas as dores que havia testemunhado, ao longo dos anos como médico do hospital, nenhuma lhe dava mais prazer do que a dor da alma. Portanto, o motivo que o estimulava a fazer tanta caridade nunca foi o desejo de ser útil, o gosto em prestar ajuda aos seus semelhantes, mas sim o interesse em satisfazer o seu prazer perverso de presenciar o sofrimento dos outros. Esta era a “causa secreta” que movia as ações de Fortunato.
Vale ressaltar a forma hábil como Machado de Assis disseca um comportamento doentio, hipócrita, capaz de dar origem a ações altruístas que aparentam ser uma manifestação de imensa bondade e de abnegada dedicação aos que sofrem. Este é uma questionamento recorrente na obra do autor, empenhado em enfatizar um fato que, para ele, traduz uma verdade irretorquível: a absoluta oposição entre a aparência e a essência.

25 de outubro de 2010

Amor e outros males. Crônca de Rubens Braga

Uma delicada leitora me escreve: não gostou de uma crônica minha de outro dia, sobre dois amantes que se mataram. Pouca gente ou ninguém gostou dessa crônica; paciência. Mas o que a leitora estranha é que o cronista "qualifique o amor, o principal sentimento da humanidade, de coisa tão incômoda". E diz mais: "Não é possível que o senhor não ame, e que, amando, julgue um sentimento de tal grandeza incômodo".
Não, minha senhora, não amo ninguém; o coração está velho e cansado. Mas a lembrança que tenho de meu último amor, anos atrás, foi exatamente isso que me inspirou esse vulgar adjetivo – "incômodo". Na época eu usaria talvez adjetivo mais bonito, pois o amor, ainda que infeliz, era grande; mas é uma das tristes coisas desta vida sentir que um grande amor pode deixar apenas uma lembrança mesquinha; daquele ficou apenas esse adjetivo, que a aborreceu.
Não sei se vale a pena lhe contar que a minha amada era linda; não, não a descreverei, porque só de revê-la em pensamento alguma coisa dói dentro de mim. Era linda, inteligente, pura e sensível – e não me tinha, nem de longe, amor algum; apenas uma leve amizade, igual a muitas outras e inferior a várias. A história acaba aqui; é, como vê, uma história terrivelmente sem graça, e que eu poderia ter contado em uma só frase. Mas o pior é que não foi curta. Durou, doeu e – perdoe, minha delicada leitora – incomodou.
Eu andava pela rua e sua lembrança era alguma coisa encostada em minha cara, travesseiro no ar; era um terceiro braço que me faltava, e doía um pouco; era uma gravata que me enforcava devagar, suspensa de uma nuvem. A senhora acharia exagerado se eu lhe dissesse que aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu dormia pregado; então serei mais modesto e mais prosaico dizendo que era como um mau jeito no pescoço que de vez em quando doía como bursite.
Eu já tive um mês de bursite, minha senhora; dói de se dar guinchos, de se ter vontade de saltar pela janela. Pois que venha outra bursite, mas não volte nunca um amor como aquele. Bursite é uma dor burra, que dói, dói, mesmo, e vai doendo; a dor do amor tem de repente uma doçura, um instante de sonho que mesmo sabendo que não se tem esperança alguma a gente fica sonhando, como um menino bobo que vai andando distraído e de repente dá uma topada numa pedra. E a angústia lenta de quem parece que está morrendo afogado no ar, e o humilde sentimento de ridículo e de impotência, e o desânimo que às vezes invade o corpo e a alma, e a "vontade de chorar e de morrer", de que fala o samba?
Por favor, minha delicada leitora; se, pelo que escrevo, me tem alguma estima, por favor: me deseje uma boa bursite.


Comentário

Rubem Braga (1913-1990) foi cronista, poeta, repórter, tradutor e crítico de artes plásticas. Escreveu grandes obras como: Três Primitivos, Casa do Braga e O Conde e o Passarinho . Tornou-se conhecido do grande público ao escrever crônicas em jornais de grande circulação.
A crônica de Rubem Braga retrata um fato do cotidiano, porém a maneira de narrá-lo  dá ao seu texto a característica da universalidade que distingue o autor tornando-o um renovador da crônica brasileira. O assunto é simples: explicar a uma leitora, que lhe enviou uma carta, os motivos que o levam a considerar o amor uma fonte de males, uma coisa incômoda, a partir da sua própria experiência.

23 de outubro de 2010

O Retrato de Mônica, conto de Sophia de Mello Breyner Andresen

Mônica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, colecionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstrata, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mônica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstrata. Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mônica trabalha de sol a sol. De fato, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mônica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa o cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.Isto obriga Mônica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distração pode causar morte do artista». Mônica nunca tem uma distração. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mônica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é ótima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mônica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exatamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mônica é sólido e grande. Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mônica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mônica é um pobre diabo que Mônica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mônica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mônica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante. É por isso que Mônica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mônica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum. E por isso Mônica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve. Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mônica.
Há vários meses que não vejo Mônica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mônica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto. Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor. E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mônica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.

(Contos Exemplares. Porto, Figueirinhas, 1996.).


COMENTÁRIO DO TEXTO

Sophia de Mello Breyner Andresen foi uma das maiores expressões da poesia em Portugal. Escreveu apenas um livro de contos para adultos – Contos Exemplares - que representa o que há de melhor no gênero. Pertencente à aristocracia, a autora nunca se omitiu de tecer críticas a sua classe social, da mesma forma que jamais endossou o calculismo ou a piedade caritativa hipócrita em relação aos oprimidos. Estas atitudes são sarcasticamente retratadas no conto, no qual Sophia esbanja no refinamento da ironia, especialmente em relação à personagem principal Mônica.
O que percebemos em O Retrato de Mônica é a desmistificação da ideologia dominante, feita através do recurso a signos metafóricos, como as figuras do “homem importantíssimo” (marido de Mônica) e do “Príncipe deste Mundo” (símbolo do ditador). Ambos metaforizando a idéia de poder, de posse e de superioridade. Por sua vez, Mônica é descrita ironicamente do contrário do que realmente ela é, ou seja: como exemplo de mulher perfeita, extremamente séria e detentora de grande sucesso no meio social por onde circula. Todavia, essas virtudes assumem conotações negativas no discurso de Sophia. A autora usa Mônica para traçar o perfil abjeto da camada social dominante.Por meio da alegoria, a narradora faz referência a uma mulher que condensa em si as qualidades e os defeitos da classe social a qual ela pertence. É através da alusão à prolongada conversa de Mônica , “com grande intimidade," com o Príncipe do Mundo que é apontado o perfeito entendimento e a cumplicidade entre a classe dominante e o ditador. Mônica simboliza uma camada social que foi o maior apoio ao poder ditatorial. Claro que a ironia está ao serviço da intencionalidade moralizante do conto. Portugal viveu quase 50 anos de ditadura e a autora, pertencendo à nata social, deve ter testemunhado situações que lhe inspiraram o conto.

A Terceira Margem do Rio, conto de Guimarães Rosas

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre.
Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou:
— "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos.
Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente.
Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho. Nossa mãe,vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala.
Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável.
Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia. Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu.
Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados. Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais.
Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração.
Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

(Guimarães Rosa. Primeiras Estórias.
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1988)

Comentário do conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa.

 A terceira margem do rio, um dos mais extraordinários contos de Guimarães Rosa, narra a história de um homem que se evade de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, lugar em que, dentro de uma canoa, flutua “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”.
Porque foge aos padrões de comportamento tidos como normais pela sociedade, o homem passa a ser considerado como um desequilibrado que age sob o comando de sua loucura. Todavia, a explicação para tão insólita opção de viver apartado das pessoas da própria família, vagando pelo rio sem destino certo, pode ser outra bem diferente da loucura.
Ora bem, atentemos para o título do conto – A terceira margem do rio – ele envolve inquietante mistério, assim sendo, o seu significado tem que ser buscado na própria narrativa, pois é evidente que o autor tinha uma intencionalidade precisa quando o escolheu. Considerando que um rio só tem duas margens, a busca de uma terceira margem pelo homem poderá ter um significado metafísico e, a partir desta possibilidade, a viagem que, no plano material, seria sem destino e sem sentido, na verdade tem uma rota que vai muito além do mero passeio, do mero vagar sem rumo, na medida em que seu objetivo transcende a materialidade.
O homem, na verdade, foge de uma vida apagada, medíocre e sem sentido, em busca de respostas, de ordem metafísica e existencial, que não encontrou nas limitações e na superficialidade da visão do senso comum.A terceira margem representa o que é subjetivo no sujeito e, portanto, é invisível para os olhos, é o que não pode ser tocado, o que nos é desconhecido, mas que se sabe ter existência no interior de cada um ou no plano da transcendência. Assim, ao partir em busca da terceira margem do rio, o homem vai à procura do que desconhece em seu interior, em seu mundo subjetivo, na ânsia de entendimento dos mistérios do espírito, do sem sentido da vida, do que não compreende em sua existência.
É em busca de repostas para essas questões e da conseqüente completude que elas lhe proporcionariam que ele se mantém anos a fio no vai e vem meditativo pelo rio, na mais absoluta incomunicabilidade com as pessoas e com a realidade material.O filho do homem e também o narrador testemunhal da história é o único familiar que nunca se afasta do rio, ansioso e preocupado.
Vale lembrar que, quando criança, ele queria partir na companhia do pai. Este o impediu. Depois de adulto, já enriquecido com a sabedoria própria da meia idade, começou a perceber as razões que motivaram a busca do pai e resolveu fazer alguma coisa para o libertar o pai, tomando o seu lugar no barco. Chegando-se à margem do rio, diz que quer substituí-lo. Este é o único momento em que o velho esboça um gesto de aproximação, remando em direção à margem, para encontrar o filho. No entanto, ao ver a figura esquálida do pai, com o corpo mal coberto com as roupas em trapos, barba e cabelos crescidos, os pelos e a pele enegrecidos pelo sol, o narrador fica perplexo e com enorme medo da imagem física decadente e horrenda do pai, que parecia vir de uma outra realidade, além da vida. Então foge, “por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado”.
Em conseqüência desse seu ato de covardia, condenou-se a uma existência medíocre e apagada, marcada pelos males da velhice, pelo cansaço e pelo sentimento de culpa por ter voltado as costas ao pai: “E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: "e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.”

12 de outubro de 2010

Osman Lins. A Partida

Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir. Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor.
Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa. Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!
Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama. Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção. Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras. Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se: — Acordado?
Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas. Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre. Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo.
A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto. Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.
Acordei pela madrugada. A princípio com tranqüilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus? Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir. Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia desses gestos, estremeci.
Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários.

4 de outubro de 2010

Comentário do conto A Partida, de Osman Lins

Osman Lins nasceu a 5 de julho de 1924, em Vitória de Santo Antão (PE) e faleceu. em 1978, vitimado por um câncer.

O conto "A Partida" está inserido no livro "Os Gestos". Sua temática gravita em torno do conflito vivido por um adolescente em sua relação com a avó que o criou. Assim, de um lado, está a avó cheia de cuidados e de preocupações; enquanto do outro lado, posiciona-se o neto ávido para libertar-se da sua tutela e partir para uma outra cidade em busca de sua autonomia e independência.

O autor apresenta uma abordagem predominantemente lírica da tragédia que ronda a condição humana, observável na forma como expõe os sentimentos das personagens e como revela os meandros conflituosos dos relacionamentos afetivos.

A pródiga utilização do monólogo interior, a partir do qual o narrador realiza a análise psicológica dos personagens, devassa seus fluxos de consciência, aponta os seus gestos, principalmente os mais complexos e obscuros, todos plenos de significado e sentimento, bem situados no quadro específico da impotência de cada um, quando confrontado com as complicadas situações que a vida propõe.

Sob o jugo das pressões oriundas da pobreza e da descrença em um futuro melhor no limitado e atrasado contexto da cidadezinha interiorana, o jovem personagem angustia-se e sofre por desejar partir, deixando sozinha a sua avó, ao mesmo tempo em que devaneia com as maravilhas que encontrará na cidade grande.

A ansiedade para partir e a saudade antecipada geram uma atmosfera angustiante, pesada e tensa em torno do neto e sua avó, notadamente nos momentos que antecedem a partida do jovem, quando este se esquiva de qualquer manifestação afetiva com a avó, motivado pelo receio de fraquejar em sua determinação de escapar à situação incômoda e sufocante que radica na exagerada e opressiva vigilância, nos excessos de zelos da bondosa e rigorosa senhora.

Vale notar que os fatos são narrados pelo personagem principal, muito tempo depois da sua ocorrência, quando ele já atingira a idade adulta.

Fica claro que a intencionalidade do narrador não é apenas relatar um fato situado em sua juventude, mas, antes de tudo, revisá-los sob um outro prisma, propiciado pela visão do adulto experiente,já despojado dos arroubos e das aflições da adolescência.

Sua análise incide sobre os derradeiros momentos vividos com a avó. São os últimos olhares, as últimas palavras e os últimos gestos que antecederam sua partida que rememora, anos depois, revivendo as ações e os sentimentos, mesmo os mais obscuros que o assaltaram naquela última noite que passou na companhia da avó.

É justamente esta rememoração, feita no tempo presente de fatos vivenciados no passado, que revela o conflito interior vivido pelo personagem, na adolescência. Conflito que se instaura na revisão da sua relação tensa de neto jovem e rebelde, aparentemente insensível, com a emoção, a tristeza e a solicitude da avó.