16 de dezembro de 2010

Um cão apenas, crônica de Cecília Meireles


Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim – plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas.
Com um grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem… Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves, acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir.
Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um tratamento… Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.
Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens. Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.
Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter ocupado um lugar que não era o seu.
Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.

Comentário


Cecília Meireles não foi apenas uma grande poeta, ela também foi magnífica em suas crônicas, todas escritas com extraordinária leveza, suave emoção e intensa poeticidade e, muitas vezes, confundidas com um conto. Vale lembrar que a crônica, nos dias atuais, possui uma forma de expressão bem particularizada, com características próprias que a tornam distinta e inconfundível com o conto. Este é pura ficção, a crônica não o é, sua gênese radica na realidade concreta. 
Ela goza de prestígio no panorama da literatura, notadamente no Brasil, onde muitos cronistas-escritores notabilizaram-se pela qualidade impar dos seus textos: Machado de Assis, Olavo Bilac, Humberto de Campos, Raquel de Queirós, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rubens Braga, Paulo Mendes, Paulo Francis, Érico Veríssimo e tantos outros, integram a galeria dos grandes cronistas brasileiros. Todos cultivaram ou cultivam a crônica com assiduidade.
Eu amo as crônicas, especialmente por sua brevidade e por se reportarem a fatos do cotidiano, a alguma experiência do autor, a algo que ele captou nas ruas, nas pessoas, etc. Dentre ao autores de minha preferência, escolhi Cecília Meireles, autora de um dos textos que mais aprecio por sua poeticidade, pela sensibilidade como ela percebe a realidade que a rodeia e pela reflexão que faz acerca da relação entre humanos e animais: Um cão apenas.

Um cão apenas descreve um encontro casual da autora com um pequeno cão sujo e doente que dormia à sombra de uma porta. Desse fato corriqueiro, a cronista faz um tocante relato acerca da miséria, do abandono e da solidão em que vive o animalzinho, vítima da indiferença das pessoas e da omissão dela própria, que nada fez para ajudá-lo, apesar do olhar de súplica que a pequena criatura lhe lançou. Consciente de sua omissão e já com o peso da culpa a pesar-lhe na consciência, ela diz: “Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens”.
Vale observar a elaboração do cenário em que se desenrola a história do encontro entre a autora e o pequeno cão, notadamente o subir e descer os quarenta degraus da escada da praça: “Subido, de ânimo leve e descançado passo, os quarenta degraus do jardim – plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito -, eis-me no patamar.” Este cenário primaveril é retomado no quarto parágrafo, significando que a ação de desenrola no mesmo cenário indiferente, alheio: os mesmos elementos do ambiente rodeiam a autora que sobe “de ânimo leve e descansado passo” e o triste cãozinho que desce “como um velhinho maltrapilho, cansado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino”.
A mensagem da crônica ultrapassa a tragédia do pequeno cão, estendendo-se às muitas tragédias humanas de pessoas, inclusive crianças e velhos, que vivem no mesmo abandono, especialmente nas grandes cidades. Passamos por eles, apressados, com o olho no relógio, sempre com algo mais importante e mais urgente para fazer, por vezes até nos vem um impulso para socorrê-los, mas não o fazemos por vários motivos que damos a nós mesmos, para aliviar a consciência.
Em alguns casos, só mais tarde, volta-nos à memória a lembrança daquele ser humano deitado encolhido no canto da parede, pálido, trêmulo, visivelmente doente, faminto e desamparado. Podíamos tê-lo socorrido e não o fizemos, ninguém o fez, todos indiferentes e apressados, sem tempo “para perder” com um pobre mendigo anônimo.  Afinal, em nossa sociedade materialista, não se costuma olhar para quem não vale a pena. A maioria é omissa sem remorsos, com pessoas e com cães desvalidos.
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Por Zenóbia Collares Moreira Cunha


1 de dezembro de 2010

Reminisção, conto de Guimarães Rosa

Vai-se falar da vida de um homem; de cuja morte, portanto. Romão – esposo de Nhemaria, mais propriamente a Drá, dita também a Pintaxa – impar o par, uma e outro de extraordem. Escolheram-se, no Cunhãberá, destinado lugar, onde o mal universal cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem. Sua história recordada foi longa: de tigela e meia a peso de horror. O fundo, todavia, de consolo. Esse é um amor que tem assunto. Mas o assunto enriquecido – como do amarelo extraem-se idéias sem matéria. São casos de caipira.
Foi desde. Parece até que iam odiar-se, moço e moça, no então. Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça, abexigada, feia feito fritura queimada, ximbé- - ximbeva; primeiro sinisga de magra, depois gorda de odre, sempre própria a figura do feio fora-da-lei. Medonha e má; não enganava pela cara. Olhar muito para uma ponta de faca, faz mal. Dizia-se: - “Indicada.”

Romão, hem, gostou dela, audaz descobridor. Pois – por querer também os avessos, conforme quem aceita e não confere? Inexplica-o a natureza, em seus efeitos e variados objetos; ou como o principal de qualquer pergunta nela quase nunca se contém. Romão, meão, condiçoado, normalote, pudesse achar negócio melhor. Mas ele tinha em si uma certa matemática.E há os súditos, encobertos acontecimentos, dentro da gente.

De namoro e noivado, soube-se pouco. Também da sem-graça cerimônia ou maneira, de que se casaram, padrinhos Iô Evo e Iá Ó e quiçá os de Romão e Drá anjos entes. Àquilo o povo assistiu com condolência? Tais vezes, a gente ao alheio se acomoda – preto no branco, café na xícara. Cunhãberá via-os não via, sem pensar em poder entender: anotava-os.
Mas o casal morou na Rua-dos-Altos, onde o Romão estava bom sapateiro. Para fora, deviam de ser moderados habitantes. Era um silêncio quase calado. Comparem-se: o vagalume, sua luzinha química; fatos misteriosos – a garça e o ninho por ela feito. Iam, consortes, para os anos que tendo de passar.
Se como o nem faro e cão – mas num estado de não e sim, rodavam tantas voltas – juntos. Pois. A Drá contra a ocasião de querer-bem se tapava, cobreando pelos cabelos, nas mãos um pedaço de pedra. Ela não perdoava a Deus. – “Padece o que é...” – deduzia Iá Ó. Da dor de feiúra, de partir espelho. Iô Evo disse: que tomava culpa, de ter testemunhado.
Romão, hem, se botava de nada? Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos; afugentou os da sua amizade. Romão amava. Decerto ela também, se sabe hoje, segundo a luz de todos e as sombras individuais. O estudo do mundo.
Todo o tempo o atanazava, demais de cenhosa, caveirosa, dele, aquela mulher mandibular. Vês tu, ou vê você? Romão punha-lhe devoção, com pelejos de poeta, ou coisa ou outra, um gozar sentido e aprendido, preciso, sincero como o alecrim.
Tinhava-se, a Drá. Seus filhos não quiseram nascer. Romão imutava-se coitado. Disso ninguém dava razão: o atamento, o fusco de sua tanta cegurira? Sapateiro sempre sabe. Ou num fundo guardasse memória pré-antiquíssima. Tudo vem a outro tempo. 
Então, quando deles no diário ninguém mais se espantava, de vez, houve. Sortiu-se a Drá, o diabo às artes. Égua aluada, e com formigas no umbigo.Em malefaturas, se perdeu, por outro, homem vindico, mais moço.O povo, vendo, condenava-a; de pena do Romão – a tragar borras. Ele, não, a quem o caso de mais perto tocava. E a Iô Evo disse: que bom era ela crer, que valia, que dela gostavam... Romão olhava em ponto, pisava curto, tinham receio de sua responsabilidade.
Nem o moço de fora a quis mais. Desrazoável, mesmo assim, a Drá de casa se sumiu, com seus dentes de morder. Romão esperou, sem prazo. Se esforçava, nesse eixar-se, trincafiava, batia sola. Seguro que, por meio de Iá Ò, pedu que ela tornasse.
Drá voltou, empeçonhada, trombuda, feia como os trovões da montanha. Romão respeitava-a, sem ralar-se nem mazelar-se, trocando pesares por prazeres, fazendo-lhe muita fidelidade. Fez-lhe muita festa. De por aí, embora, seresma ela se aquietou, em desleixo e relaxo. Nem fazia nada, de cabeça que dói. Só empestava. Vivia e gemia - paralelamente. Chamou-a então Pintaxa o bufo do povo.
Foi, e teve ela uma grande doença. Real.de que escapou pelo Romão, com seus carinhos e tratos. Sarou e engordou, desestragadamente, saco de carnes e banhas, caindo-lhe os cabelos da cabeça, nos beiços criado grosso buço, de quase barba. Era bem a Pintaxa, a esta só consideração. Cunhãberá jurou-a por castigada. Romão queria vê-la chupar laranjas, trivial, e se enfeitar sem ira nem desgosto. Ele envelhecia também. Os dois, à tarde, passeavam. Quem espera, está vivendo.
Depois, ele se enfermou, à-toa, de mal de não matar. A Drá alvoroçou o lugar. Ela chorava, adolorada: teve de emsi, notícia, das que não se dão. Pediu socorro.
O povo e o padre no quarto, o Romão onde se prostrava, decente, chocho, em afogo, na cama. Ele estava tão cansado;buscava a Drá com os olhos. Que quis falar, quis, pôde é que foi não. Iá Ó passava um lenço, limpava~lhe a cara, a boca. Iô Evo mandou-o ter coragem, somente.
Dando-se, no Cunhãberá, o fato, de inaudimento.
Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam também, pedacinho de instante: o esboçoso, vislumbrança ou transparecência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a luminosidade, alva belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria.
Romão dormido caiu, digo, hem, inteiro como um triângulo, rompido das amarras. Ele era a morte rodeada de ilhas por todos os lados. Mentiu que morreu. Deu tudo por tudo.
A Drá esperançada se abraçou com o quente cadáver, se afinava, chorando pela vida inteira. Todo fim é exato. Só ficaram as flores.



Comentário do conto "Reminisção", de G. Rosa


Reminisção é um dos contos da coletânea Tutaméia – terceiras estórias (1967. Talvez seja o que mais possibilita a identificação de algumas das diretrizes que norteiam o fazer literário de Guimarães Rosa, implícitas nos seus quatro prefácios, todos eles constituídos como reflexões veiculadoras da teoria literária pessoal e particularíssima do autor, perceptíveis numa leitura atenta das linhas e entrelinhas de cada um deles. 
Em uma primeira leitura, “Reminisção” parece ser apenas a narrativa de uma estranha e inusitada história de amor, vivenciada por Romão e Drá, em uma cidadezinha sertaneja. Mas, há outras leituras possíveis do conto que remetem para questões de ordem teóricas, pois, nele, Guimarães Rosa instaura uma realidade que rompe com os sistemas racionais do pensamento para a apreensão do real, substituídos por outro pautado em sua visão particularizada e pessoal sobre os fatos ficcionalizados. Trata-se de um posicionamento do autor contrário à supremacia da Razão, esquivo ao primado do método racional como único e superior caminho para a apreensão do real. Guimarães Rosa privilegia outras escolhas, como a intuição, a revelação, a inspiração, para fugir ao dogmatismo da inteligência reflexiva e à tirania da razão cartesiana. 
No que respeita à “estória” narrada, temos duas personagens centralizando a trama: Romão, sapateiro, homem tranqüilo, tolerante, devotado, e sua mulher, a Drá, mulher horrenda, má, “feia feito fritura queimada” (p.82) ou “feia como os trovões da montanha”, “empeçonhada”, “trombuda” (p.83) como declara o narrador, que não faz economia dos mais negativos adjetivos e comparações para caracterizar a personagem feminina como a mais peçonhenta, odiosa e execrável dentre todas as mulheres do lugarejo. Romão, que parece cego para as más qualidades e intensa feiúra da criatura, apaixonou-se perdidamente por ela. O seu intenso amor é uma força avassaladora que ignora e supera tudo, feiúra, doença, traição, ignorando, inclusive, as opiniões desfavoráveis da comunidade. Sim, a visão de Romão sobre Drá é bem diversa das visões da comunidade sobre a mesma. Romão consegue transcender à visão da aparência física da mulher, sua feiúra e mau gênio, vislumbrando outra realidade que subverte a verdade visível e observável, substituindo-a por uma realidade oposta. 
Os olhos do homem parecem não enxergar a ostensiva feiúra e a exacerbada maldade da mulher, dando a impressão de que só são capazes de ver alguma coisa escondida atrás das aparências, alguma coisa misteriosa que a comunidade não consegue ver e que unicamente Romão, pode perceber: 

“ Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos; afugentou os de sua amizade. Romão amava. Decerto ela também [...]. Todo o tempo o atazanava. Demais de cenhosa. Caveirosa, dele, aquela mulher mandibular. Vês tu, ou vê você? Romão punha-lhe devoção, com pelejos de poeta, ou coisa ou outra, um gostar sentido e aprendido, preciso, sincero como o alecrim. [...] Disso ninguém dava razão: o atamento, o fusco de sua tanta cegueira? Sapateiro sempre sabe. Ou num fundo guardasse memória pré-antiqüíssima. Tudo vem a outro tempo (p. 82)”. (grifos nossos) 

A frase grifada e o próprio título do conto justificam uma leitura do conto à luz da teoria do “amor platônico”, e da noção de “reminiscência” de Platão, filósofo cuja obra era uma grande preferência de leitura do autor. 
É evidente que Romão, não está de acordo com a forma como a comunidade vê sua mulher. Segundo a sua particular visão, Drá é belíssima. Romão não tem dela uma visão física, oriunda dos seus olhos, mas sim uma visão de outra ordem, quiçá vinda das camadas profundas do seu inconsciente, dotadas de poderes de visualizar, sob o véu das aparências, para além do físico de Drá, uma beleza sublime, transcendente, acessível apenas aos seus olhos. 
No final do conto, quando Romão adoece, já prostrado no leito de morte, Drá aparece a seus olhos em sua forma verdadeira, em sua essência: 

"Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam também, pedacinho de
instante: o esboçoso, vislumbrança ou transparecência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria." (p. 84) 

Como o narrador afirma, Romão guardava em si “memória préantiquíssima” (p. 84) – ou seja, supõe-se que a essência de Drá, sua natureza Nhemaria, em conformidade com a teoria do amor platônico, está decalcada, indelevelmente, na alma de Romão, desde tempos e realidades anteriores, vivenciadas por ambos. Assim, de acordo com a teoria platônica da reminiscência, Romão ama porque se lembra com os olhos da alma, e ama com tanta intensidade porque rememora, porque guarda em sua alma a lembrança da face original de Drá. A teoria platônica da reminiscência afirma que, quando a alma desencarna, retoma o conhecimento direto das Idéias, esquecido ao reencarnar. Todavia, tal conhecimento permanece, de forma latente, interiorizada na alma reencarnada. Isto significa que o conhecimento consiste em trazer à consciência, por meio de algum estímulo, as reminiscências interiorizadas. 
Observe-se, no final da narrativa, o momento mágico da epifania, no qual as pessoas presentes no quarto também visualizam momentaneamente a transformação da terrificante Drá na belíssima e etérea Nhemaria. Visualizam “com olhos emprestados” (p. 83), ou seja: por meio da palavra escrita do autor, modificando, metamorfoseando e recriando a realidade em conformidade com a sua concepção da vida, do homem e do mundo. Neste caso, as pessoas da comunidade que conseguem visualizar a transfiguração de Drá em Nhemaria, metaforizam os leitores que conseguem captar o sentido sotoposto do texto, apreendendo o que ultrapassa à compreensão racional do senso comum, o que transcende o sentido manifesto do texto. 


29 de novembro de 2010

A Galinha, conto de Virgílio Ferreira


Minha mãe e minha tia foram à feira. Minha mãe com o meu pai e minha tia com o meu tio. Mas todos juntos. Na camioneta da carreira. Na feira compraram muitas coisas e a certa altura minha mãe viu uma galinha e disse: 
- Olha que galinha engraçada.
E comprou-a também. Estava agachada como se a pôr ovos ou a chocá-los. Era castanha nas asas, menos castanha para o pescoço, e a crista e o bico tinham a cor de um bico e de uma crista. Nas costas levara um corte a toda a volta para se formar uma tampa e meterem coisas dentro, porque era uma galinha de barro. Minha tia, que se tinha afastado, veio ver, estava a minha mãe a pagar depois de discutir. E perguntou quanto custava. A mulher disse que vinte mil réis, minha tia começou aos berros, que aquilo só se o fosse roubar, e a mulher vendeu-lhe uma outra igual por sete mil e quinhentos. Minha mãe aí não se conformou, porque tinha regateado mas só conseguira baixar para doze e duzentos. A mulher disse: 
- Foi por ser a última, minha senhora. 
Minha tia confrontou as duas galinhas, que eram iguais, achando que a de minha mãe era diferente. 
- Só se foi por ser mais cara - disse minha mãe com a ironia que pôde. 
Minha tia aqui voltou a erguer a voz. Não se via que era diferente? Não se via que tinha o bico mais perfeito? E o rabo? 
- Isto é lá rabo que se compare? 
E tais coisas disse e tantas, com gente já a chegar-se, que minha mãe pôs fim ao sermão, por não gostar de trovoadas: 
- Mas se gostas mais desta, leva-a, mulher. 
Foi o que ela quis ouvir. Trocou logo as galinhas, mas ainda disse: 
- Mas sempre te digo que a minha é de mais dura, basta bater-lhe assim (bateu) para se ver que é mais forte. 
- Então fica com ela outra vez - disse minha mãe. 
- Não, não. Trafulhices, não. Está trocada, está trocada. 
Meu tio estava a assistir mas não dizia nada, porque minha tia dizia tudo por ele e, se dissesse alguma coisa de sua invenção, minha tia engolia-o. Meu pai também estava a assistir, mas também não dizia nada, por entender que aquilo era assunto de mulheres. Acabadas as compras, minha mãe voltou logo com o meu pai na carroça do Antônio Capador, que tinha ido vender um porco. Mas a minha tia ficava ainda com o meu tio, porque precisavam de ir visitar a D. Aurélia, que era uma pessoa importante e merecia por isso uma visita para se ser também um pouco importante. E como ficavam e só voltavam na camioneta da carreira, a minha tia pediu a minha mãe que lhe trouxesse a galinha, para não andar com ela o dia inteiro num braçado, que até se podia partir. De modo que disse: 

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Comentário do conto A Galinha, de V. Ferreira


O que lemos no conto de Virgílio Ferreira é uma história que, apesar de instaurar um clima de tragédia, é narrada de forma engraçada e perpassada de ironia. A trama narrativa acontece em uma pequena aldeia que serve de cenário para uma ensandecida querela entre duas mulheres, causada pela simples aquisição de uma inofensiva galinha de barro numa feira. Todavia as conseqüências da acalorada discussão rica em troca de desaforos e de acusações, absurdamente, assumirão proporções alarmantes, descontroladas e trágicas.
A narrativa vergiliana se afirma como uma crítica mordaz à sociedade, veiculada por uma história de cunho moralizante, que se desenvolve como uma alegoria do comportamento humano. Uma insignificante galinha exemplifica o quanto um motivo sem importância, fútil e sem gravidade pode fazer vir à tona todo os ódios, rancores, desejos de revanchismos e de ajustes de contas, além de outros sentimentos mesquinhos como a avareza, a inveja e a cobiça, adormecidos nos habitantes de pequenas comunidades, prontos para explodir.
Apesar da tragicidade macabra da história, na qual muitos são mortos e outros tantos são feridos, o espírito cômico e a sutileza irônica vergilianos permeiam toda a narrativa. 
A “Tia”, invejosa, mesquinha e desaforada, funciona como agente desencadeador da polêmica e da escandalosa confusão que leva a aldeia a uma situação caótica, derivada do escândalo promovido pela “Tia”, em torna das duas galinhas. O conflito, iniciado pelas quatro personagens diretamente envolvidas na querela (o pai, a mãe, o tio e a tia do narrador-personagem), logo se estendem aos demais habitantes da aldeia, na medida em que provocam o ressurgimento de antigas animosidades, ódios, invejas que passam a comandar as cobranças e os ajustes de contas reprimidos e adiados por cada um. É inevitável o efeito dominó de cada batalha sangrenta que se repete, dizimando os habitantes do lugar.
O veio cômico e a sutil dose de humor negro, típico do estilo vergiliano, dão um toque de leveza à tragicidade que invade a aldeia, tornada o palco da explosiva violência, causadora das brigas e das mortes resultantes do tal ajuste de contas, narrado de forma leve e risível.
Não obstante a comicidade do relato, o conto cumpre a sua intencionalidade de fazer crítica social, ao revelar a existência de sentimentos sórdidos que se mascaram como ações aparentemente bem intencionadas, apontando para a possibilidade da presença de tais sentimentos em qualquer pessoa, considerando que fazem parte da natureza humana.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha



24 de novembro de 2010

"Adeus", conto de Virgílio Ferreira.

Não lhe pedi que viesse. Pedi-lhe só que às dez da noite, e pela primeira vez, a sua lembrança me esperasse ao caminho. Cheguei cedo e sentei-me. Quando soasse a hora, eu queria senti-la ao pé de mim, não bem no seu corpo, não bem nas suas palavras, mas apenas naquele sossego azul que tornava o mundo perfeito. No momento combinado, eu havia de respirar o sonho de quando não sabia que era sonho.
Tudo isto está errado. Vejo-lhe daqui o erro fechado e exato como um cubo de pedra. Mas sei que lá dentro não há erros de fora. Por isso, espero. Não lhe pediria que viesse. Também não tinha pedido à lua e a lua veio, precisamente, quando pensei que era bom haver lua. Não fiquei pois surpreendido, quando, à hora marcada, no caminho que vai à fonte, Marta apareceu tão leve como a sua lembrança. Percebi então que as mimosas recendiam através da noite sem medos. E que havia em roda pinheiros e veios de água e que eu estava ali no meio de tudo.
Agora mais de perto de mim, ela trazia um cântaro no braço. Mas não parara na fonte e subira o carreiro até onde, do fundo da sua casa, devia despedir-se para sempre do meu destino. Quando saiu da sombra e me viu, parou. A lua cobriu-a de noivado, a cauda do véu derramava-se por toda a terra que tínhamos pisado juntos. Assim queda, em pé diante de mim, eu senti-a verdadeira como tudo o que era verdade à nossa volta.
-Paulo!
O caminho da serra corre ali aos nossos pés. Olho a sua mancha branca, direita por entre os pinhais, até ao alto da colina. Depois é tudo a vaguidão da noite, não o escuro de passos audazes, nem a lucidez bastante dos passos exatos, mas apenas uma luz velada, boa para todos os caminhos de quem não escuta as razões do caminhar.
Então ela pousou o cântaro e o restolho rangeu quando se sentou. Eu tinha a certeza de que ela iria falar de qualquer coisa misteriosa e longínqua, qualquer coisa já morta, mas onde pudéssemos, dali donde estávamos, ver-nos ainda vivos, sem pensamentos no depois em que agora podíamos pensar. Tinha a certeza de que ela me levaria para um presente sem memória do passado, nem receio de um passado no futuro. Eu estava ali de mãos abertas e olhos dóceis, encostado a um tronco de pinheiro. Então ela contou dos patos que criara nessa Primavera, das manhãs altas de sol, do pão que vira semear. E eu gostei, naquela hora harmoniosa, de que ela falasse nos patos, no pão e nas manhãs.
Agora, todo o campo e toda a serra abriam num místico perfume à lua e à criação. Não fugíamos propriamente à dor do momento; apenas escavávamos com os dedos o chão da nossa angústia, para tocarmos o que o vento cobrira. Depois ficamos de novo em silêncio. Tínhamos mil coisas a dizer, mas todas elas ficavam tão perto, que podiam estrangular-nos, se quisessem. Era conveniente dizer delas não o corpo rigoroso de unhas e dentes, não os pés de botas cardadas, mas apenas o bafo ligeiro ou os olhos que à distância não fossem senão olhos de olhar. Por isso, ela me perguntou, quase assustada, quase supersticiosa de turvar os rios e os lagos de lua, coalhados aos nossos pés:
-Paulo! Por que escolheste esta vida?
A aldeia estava no fundo, quieta, sem respirar, os cães uivavam das eiras para o céu. Ao longe, na serra em frente, um comboio silvou pela noite fora. Ouvia-se perfeitamente o martelar das ferragens e o apito. E eu pensei: “Vai chover. Amanhã ou depois chove. Quando se ouve o comboio chove sempre”.
-Por que escolheste esta vida?
Agora a pergunta era tão clara, que eu não achei uma sombra para me esconder. De outras vezes, outra gente me perguntara o mesmo. E nunca soube responder. Falavam-me de fora, de outro mundo, com uma linguagem diferente. E assim, as nossas idéias jogavam à cabra-cega. Eu próprio, quando queria entender-me, espreitando-me donde me não suspeitasse, não tinha razões talhadas à medida do meu sonho. Os princípios do senso da justiça talvez tivessem envelhecido e não pudessem acompanhar o meu anseio. Só metido dentro de mim eu me todo e sem razões. Hei - de um dia tombar e arrefecer. Talvez então seja possível a outros meterem em leis o que gelou do meu esforço. Até lá, é difícil. Qualquer coisa me está forçando os limites, mesmo da regra que julgo dar-me. Um vento largo ergueu-se não sei donde e arrebatou-me. Lembra-me bem como tudo aconteceu. Mas, quando penso no que eu fui, não me parece que tenha acontecido nada de extraordinário. É como se eu tivesse tivesse já nascido para isso. Meu pai às vezes dizia: “hoje vou ter sorte”; ou: “hoje vai-me acontecer uma desgraça”. O mais difícil era convencer-se de que seria assim. Porque depois, durante o dia, só tinha de andar atento para achar a desgraça ou a sorte que profetizara. Mas nunca fui capaz de saber que arranjos da vida o faziam acreditar assim na cor do seu destino diário. Havia sol ou chuva no céu, nem sempre o comer estava pronto a horas, às vezes o filho mais novo chorava sem razões adultas, ou qualquer coisa parecida. Mas é degradante pensar que fato desses decidisse das certezas de meu pai.
-Como explicar-te porque parti?
Tenho pés para andar e olhos para ver. Posso sentar-me ou posso fechar os olhos e dizer que não há sol nem estradas. Mas eu sei que há estradas e sol e que os olhos vêem e os pés andam. Por mais que eu queira, quando sei por dentro que uma coisa está certa. E ainda que os outros saibam que está errada, isso não me ajuda.
-Não me ajuda nada, Marta.
Mas como convencê-la? As razões são tanto o que somos, que só nascendo outra vez as poderemos renegar. Talvez Marta o acreditasse enfim, porque, sentada, enlaçou as mãos à frente dos joelhos unidos e calou-se de vez. Já não tínhamos que dizer, mas o eco das nossas vozes e o vapor quente da nossa presença embaciavam-nos a vontade. Um fluido estranho dissolvia-nos, e não era fácil assim acharmos o que nos tornava distintos. A lua vogava agora pela água alta do céu. Marta foi a primeira a erguer-se. Então eu ergui-me também e apertei-lhe as mãos devagar:
-Adeus!
Caminhei pela vereda branca, lavado numa pureza desconhecida, anterior à minha humanidade, e onde, no entanto, eu me sentia todo inteiro. Quando cheguei ao topo da colina, olhei ainda atrás a ausência de Marta. Mas, lentamente, surpreso e todavia calmo, fui descobrindo Marta em pessoa, em pé, no meio do caminho, vestida de lua, esperando decerto como eu que toda a serra e toda aldeia e tudo o que nos fora prometido ficasse enfim tão deferente como quando ainda não tínhamos nascido.

(Vergílio Ferreira. Contos: Lisboa, (4ª edição) - Bertrand Editora - 1991)


COMENTÁRIO
Vergílio Ferreira, natural da Serra da Estrela, nasceu em 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa em 1996. Como autor de contos e de romances, tornou-se um dos maiores escritores portugueses do século XX. Sua obra literária desenvolveu-se dentro dos princípios estéticos do neo-realismo (primeira fase) e do existencialismo que não abandonaria mais. Na vertente existencialista de sua obra, o escritor questiona a condição existencial do homem envolvido em suas tragédias, em suas buscas e opções, traduzindo a inexorável e inevitável solidão humana.
Contos é uma coletânea publicada pela primeira vez em 1976, que reuniu contos desde 1945 (“O Cerco”), até 1975 (“O Morto”), com inclusões posteriores na edição de 1991. São contos que têm entre si um espaço de quase cinqüenta anos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial até ao fim do Salazarismo.
Em “Adeus” Vergilio Ferreira praticamente desconstrói o modelo tradicional do conto, aproximando da uma prosa poética. Apenas duas personagens participam, sendo uma delas – Marta - apenas presentificada pela memória do protagonista, Paulo, em um reencontro virtual de despedida com a mesma, como sugere o primeiro parágrafo do texto.
Se o romancista é extraordinário, o contista é um mestre na arte de construir suas histórias. No conto “Adeus” somos surpreendidos pela leveza de uma linguagem sedutoramente expressiva, densa, impregnada de sentimento e de doce emoção. A narrativa, verdadeira prosa poética, é de um lirismo refinadíssimo, intenso que, em várias passagem, abre um campo de infinita beleza, especialmente pela plasticidade da linguagem e pela habilidade no uso da metáfora. Nada fica claro no texto, fica apenas subentendido, sugerido, no plano das suposições.
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Comentário de  Zenóbia Collares Moreira Cunha

5 de novembro de 2010

Soeiro Pereira Gomes, A estrada do meu destino.



Tudo me foi estranho desde o primeiro dia. O chefe, rotundo e severo, indicou-me o lugar no escritório. Apresentou-me: - O novo empregado, senhor João da Silva.

Os outros tomaram ares solenes nas secretárias, como reis em trono e miraram-me. Adivinhei-lhes o pensamento: um concorrente. Enfático, o chefe pronunciou uma a um seus nomes pesados de gerações ilustres. Curvaram por favor o tronco altivo, sem que os braços se afastassem dos braços das cadeiras. Seguros ao lugar, não fosse eu pretendê-lo.
Depois, fiquei só, repassado de silêncio e angústia. Os outros fecharam a sete chaves as portas brasonadas das suas vidas. Olhei furtivamente a sala bafienta, pejada de papéis e mesas alinhadas, monotonamente iguais. Do subconsciente, afloraram-me impressões recalcadas.Era uma manhã nevoenta de Outubro, e eu - malas dos livros às costas a pesar como chumbo - arrastava na estrada os pés sonâmbulos, para não ouvir os estalidos irritantes das folhas secas dos plátanos. Meu pai deixava-me à porta da escola.-Faz-te homem – dissera. –Aprende a ser alguém na vida.Alguém... João da Silva, o novo empregado. Eu estava outra vez na sala, entre mesas alinhadas e caras estranhas, ignorante e tímido.- Seu Silva, tem de melhorar essa caligrafia.
O mestre – pensei, à espera que a vara me caísse sobre os dedos. Mas as palavras doeram mais. Aos olhares trocistas dos outros, juntou-se o inquisitorial do chefe.- Má letra, seu Silva.Se meu pai fosse vivo... Ele que sonhava ver-me o doutor da família, dizia que eu tinha letra de médico. Enganou-se comigo e com várias outras letras que lhe arruinaram a loja. Más letras, certamente. 
Quase à porta da Universidade, retrocedi em busca doutra estrada mais longa e, por isso, mais ruim. E fiquei na encruzilha da da Vila, receoso e pedinchão, a bater a todas as portas. Por fim, entrei para ali, de fato roçado e estômago vazio. Porta da salvação – julguei. De manhã, o chefe aparecia no escritório, impante, pedagogo. Sabia. Vinham-me à idéia lições inteiras que me deram foros de bom aluno. Sempre notas altas em Ciências... Esforçava-me por gritar: “Fiz o 6º ano do Liceu. – Sei mais do que o senhor. Mas calava-me e ouvia.- Quem recebe, deve – seu Silva.Aquilo era piada aos duzentos escudos que eu recebia no fim do mês. Os outros riam, à sucapa. Que vergonha! Enervado, mais errava e confundia. E todo o dia o mesmo verrinar obcecante:-Raspe, seu Silva... emende!

O pêndulo do relógio a embalar o tempo (cada minuto, uma hora de angústia). O toque das 5 horas punha fim ao suplício. “Até amanhã – diziam. “Até um dia” –pensava eu. Recordava o Liceu à hora buliçosa da saída – “tu cá, tu lá” com os amigos; capa e batina destacando a condição; passo firme a caminho da porta certa. E partia sozinho, alheio à liberdade retomada, fato ruço no fio e passo trôpego a caminho da porta incerta.

À noite deambulava pelas ruas. Nos cafés, não entrava com vergonha dos antigos companheiros, já doutores. Decerto, faria vista grossa. Mas o meu fato dava nas vistas... Certa vez, entrei numa taberna. Gente maltrapilha em volta de mesas toscas, a beber e fumar.- Um copo de vinho branco – pedi a medo.Desconfiados, formaram grupos sussurrantes, que me olhavam de alto a baixo. Adivinhei-lhes as palavras: um intruso. E retirei-me consternado. O meu fato dava nas vistas...

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Agora, tudo me parece um sonho. O suco gástrico corroeu o estômago e as idéias. No entanto, a tigela de sopa que os cantoneiros repartiam comigo identificou-me com o mundo. Recordo. Eu estava aqui estirado na berna da estrada, à hora da sesta, e o sol entrava-me nos rasgões das calças, suspensas da gravata que tirei do pescoço. Um lugar ao sol. Há um mês que deixara o escritório, de regresso à encruzilhada. Já não era o Silva – silva rasteira entre cedros de antanho. Encontrara-me. Os cantoneiros a meu lado levantaram-se de enxada ao ombro.- Então, camarada? - perguntaram, sorridentes.

Olhei a estrada longa, reverberando ao sol. Estrada do meu destino e de todos os silvas que têm má letra. Peguei na enxada e segui-os.

(Soeiro Pereira Gomes)

COMENTÁRIO:
Comunista convicto, Soeiro Pereira Gomes revela, em seus contos, seu empenho em produzir uma arte alicerçada na concepção maxista-leninista do mundo, da sociedade e dos homens, com especial foco nas contradições sociais, na luta de classes, na luta entre exploradores e explorados. No conto “A Estrada do Meu Destino”, o autor faz um paralelo entre o mundo burguês e o mundo do proletariado, conseguindo pôr em relevo as diferenças essenciais entre a negatividade do primeiro e a positividade do segundo. A crítica mordaz aos valores e às atitudes dos representantes da burguesia é evidenciada no inusitado destino final dado à personagem João da Silva.Há no escritor e no militante comunista, Soeiro P. Gomes, o mesmo esforço para se libertar das “aparências” que, por um lado, deformam a realidade ou que dela mostram a face superficial e, por outro lado, das apa- rências que nós mesmos introduzimos na realidade, tomando por esta os nossos sonhos e desejos. No caso da personagem João da Silva, foi seu pai quem idealizou um futuro socialmente ascendente para ele, imaginando que ele seria um médico, seria um “doutor”, seria “alguém” na vida, subiria na escala social. 

3 de novembro de 2010

Perdoando Deus, conto de Clarice Lispector

Eu ia andando pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. 
Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto.
Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação…
Mas, quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte.
Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
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Autora: Clarice Lispector 

Fonte: Felicidade Clandestina, 1998.



Comentário do conto Perdoando Deus, de Clarice Lispector

Perdoando Deus chama a atenção não apenas pela exigüidade da ação, como por desenvolver-se em torno de uma só personagem que acumula, também, a função de narradora. Toda a ação é limitada a um passeio da personagem pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana, ao fato de pisar em um rato morto e à sua corrida até ao outro quarteirão onde, transtornada, se encosta a um poste. Estes movimentos ensejam as reflexões da protagonista bem como o início de um intenso e rico monólogo interior acerca das suas relações com a existência e com Deus.
A narradora abre a sua narrativa informando sobre seu estado de espírito, sobre o prazer que lhe dá o passeio despreocupado, fruindo o momento e tudo a sua volta, com a alma leve e despreocupada, satisfeita e invadida por uma sensação de liberdade e de completude.   
Um sentimento desconhecido insinua-se em seu interior, uma ternura, um afeto nunca antes sentidos, oriundos da inusitada idéia de que era a mãe de Deus e de tudo o que existe na Terra Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo.
Todavia, um fato exterior negativo rompe o clima de enlevo cósmico da protagonista, fazendo desmoronar toda a beleza e satisfação que experienciara: a súbita visão de um rato morto. Tumultuada e perplexa, ela corre. Revolta-se, fica indignada e pensa em vingar-se de Deus. "Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto."
Este fato, na medida em que interrompe todo o conjunto de sentimentos e sensações benéficos que se agasalhavam no interior da personagem, constitui o momento epifânico da narrativa, provocando uma mudança radical no estado de inefável leveza que lhe ia na alma. A visão do rato morto desconstrói sua felicidade anterior, arrastando-a para sentimentos absolutamente contrários: o “terror de viver”, o “pânico” e o “medo” desnorteantes:
“E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos”. (§3)
A surpresa, a perplexidade e o susto decorrentes da visão do rato morto, resultaram numa reação de revolta, decepção e raiva em relação a Deus, a grosseria do seu ato, tão oposto a tudo quanto a narradora sentira de puro e delicado.  Veio-lhe o ímpeto de vingança, logo atenuado pela certeza da sua impotência contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado a podia esmagar. A conseqüência do incidente foi o sentimento de estar distanciada de Deus: “Em mim é que eu não o via mais” (§5).
Todavia, o ela que faz é tentar, por meio de uma profunda reflexão, compreender a motivação de Deus para agir como agiu. É então que, no decurso desta, tem início um processo de auto-conhecimento e o consequente reconhecimento das suas próprias fraquezas, limitações. O resultado foi das elucubrações da narradora foi a sua reconciliação com Deus. Todavia, o Deus que resgatou já não é o mesmo ser perfeito, sereno e distante do início, mas sim um Deus concebido a partir de um ponto de vista mais humano a quem ama com lucidez
Daí, passa a tecer esclarecedoras reflexões sobre si mesma, sobre as suas idéias errôneas e impressões equivocadas sobre sua própria pessoa e sobre a sua forma fantasiosa decriar uma imagem de Deus. A narradora percebeu então que a sensação que tivera era equivocada, concluindo que estivera amando um mundo que não existe: “no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. E porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele.(...) Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza?”
A natureza humana é também posta em xeque, com o reconhecimento da personagem de que ela também é capaz de desejar a morte de um rato, que ela se enganara ao se julgar capaz de sentir apenas “amor inocente”, pois, na verdade, apenas limitou-se a conter os crimes que não cometeu.  Ao ver-se negando uma parte de si mesma compreende a fragilidade dos elementos no quais pautou as suas relações com a vida e sua visão de Deus. Dá-se conta de que é possível ser Deus uma criação do seu imaginário, quiçá uma mera projeção do que ela não consegue aceitar nela própria. Prossegue em sua caminhada em aflitivo solilóquio, tomada de tristeza, concluindo a sua narrativa com a  certeza de que enquanto inventasse, Ele não existiria.

1 de novembro de 2010

A arte de ser feliz, crônica de Cecília Meireles.


Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega; era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas d’água que caiam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
(Cecília Meireles, Quadrante I, Ed. do Autor, 5a ed. Rio de Janeiro, 1968, p. 10)


Comentário do texto:


“É preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.” Nesta frase está resumida a lição mágica que escancara as portas da sensibilidade para que vejamos, com olhos de ver, as coisas e as pessoas em sua essência, em profundidade. A mesma paisagem pode ser vista de formas completamente diferentes e até opostas por pessoas diferentes, como as pessoas às quais a cronista fala dessas pequenas felicidades que fruía de sua janela. Algumas pessoas “cegas” para a “eterna novidade do mundo” acharam que Cecília vira algo saído do seu imaginário, “que essas coisas não existem”, outras igualmente “cegas” e insensíveis disseram que tais percepções só existem diante da janela da cronista. Apenas alguns mais lúcidos e sensíveis atinaram com a verdade: “é preciso aprender a ver, é saber enxergar nas coisas mais singelas do cotidiano, mesmo no já visto, “aquilo que nunca antes tinha visto”, sentindo-se “nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo...”, como pregava Alberto Caeiro.
Ver com olhos lúcidos e perscrutadores, interessados em ir além das aparências, não é a mesma coisa que olhar aleatoriamente, sem fixarmos a nossa atenção e a nossa capacidade de percepção. Aprender a olhar, educar a visão é, portanto, essencial para que possamos captar a realidade que nos circunda em plenitude, encantarmos-nos com ela, fruindo momentos fugazes de íntima alegria, de felicidade e de comunhão com as coisas e com as pessoas. Era com esse olhar educado para ver, que Cecília desvendava toda a beleza dos elementos mais simples do cotidiano, que percebia a poeticidade e leveza do pombo pousado no ovo de louça azul que se confundia com o azul do céu, e absorvia a essência poética que pode existir nos gestos, nos fatos e nas cenas mais corriqueiras do dia-a-dia.
Alberto Caeiro, o heterônimo pessoano, diz que: “o essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê”.
Cecília, em sua crônica, revelou, mais uma vez, a sua poderosa percepção do real, sua sensibilidade extraordinária e sua visão poética e humaníssima da vida. Ao fim e ao cabo, findou nos legando uma lição sobre a “arte de ser feliz”, tão fácil de ser posta em prática, tão acessível a todas as pessoas empenhadas em ver o mundo através da lupa da beleza e da sensibilidade.

28 de outubro de 2010

José C. Pires: Uma simples flor em teus cabelos claros

«Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacudindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse. Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira atéentão, çadase sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre,varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.» 
«Marcaste o despertador?»
«Hã?»
«O despertador, Quim. Para que horas o puseste?»
«...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido,  despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...»
 «Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?»
«O despertador?»
«Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força,caramba.» 
«Pronto. Estás satisfeita?» 
«Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.» 
«-Mais um mergulho - pedia a rapariga.  A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço; - Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda. 
Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga. 
- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. 
- Vamo-nos vestir? 
Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilanteda jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro. Paulo apertou mansamente a mão da companheira; 
- Embora? 
- Embora - respondeu ela. E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.» 
«Quim... » «Outra vez?» «Desculpa, era só para baixares o candeeiro. Que maçada, estou a ver que tenho de tomar outro comprimido.» 
«Lê um bocado, experimenta.» 
«Não vale de nada, filho. Tenho a impressão de que estes comprimidos já não fazem efeito. Talvez mudando de droga... É isso, preciso de mudar de droga.» 
«- Tão bom, Paulo. Não está tão bom? 
- Está óptimo. Está um tempo espantoso. Maria continuava sentada na areia. Com os braços envolvendo as 
pernas e apertando as faces contra os joelhos, fitava o nada, a brancura que havia entre ela e o mar, e 
os olhos iam-se-lhe carregando de brilho. 
- Tão bom - repetia.  
- Sim, mas temos que ir. Com o cair da tarde a névoa desmanchava-se pouco a pouco. Ficava unicamente a cobrir o mar, a separá-lo de terra como uma muralha apagada, e, de surpresa, as dunas e o pinhal da costa  surgiam numa claridade humilde e entristecida. 
Já de pé, Paulo avistava ao longe a janela iluminada do restaurante. 
- O homem deve estar à nossa espera 
- disse ele. - Ainda não tens apetite? - E tu, tens? - Uma fome de tubarão. - Então também eu tenho, Paulo. 
- Ora essa? - Tenho, pois. Hoje sinto tudo o que tu sentes. Palavra. 
«Se isto tem algum jeito. Qualquer dia já não há comprimidos que me cheguem, meu Deus.» «Faço ideia, com essa mania de emagrecer... » 
«Não, filho. O emagrecer não é para aqui chamado. Se não consigo dormir, é por outras razões. Olha, talvez seja por andar para aqui sozinha a moer arrelias, sem ter com quem desabafar. Isso, agora viras-me as costas. Nem calculas a inveja que me fazes.»
 «Pois.» 
«Mas sim, fazes-me uma inveja danada. Contigo não há complicações que te toquem. Voltas as costas e ficas positivamente nas calmas. Invejo-te, Quim. Não calculas como eu te invejo. Não acreditas?» 
«Acredito, que remédio tenho eu?» 
«Que remédio tenho eu... É espantoso. No fim de contas ainda ficas por mártir. E eu? Qual é o meu remédio, já pensaste? Envelhecer estupidamente. Aí tens o meu remédio.» 
«Partiram às gargalhadas. À medida que se afastavam do mar, a areia, sempre mais seca e solta, retardava-lhes o passo e, é curioso, sentiam as noite abater-se sobre eles. Sentiam-na vir, muito rápida, e entretanto distinguiam cada vez melhor, as piteiras encravadas nas dunas, a princípio pequenas como galhos secos e logo depois maiores do que lhes tinham parecido à chegada. E ainda as manchas esfarrapadas dos chorões rastejando pelas ribas arenosas, o restaurante ermo, as traves; de madeira roídas pela maresia e, cá fora, as cadeiras de verga, que o vento tombara, soterradas  na areia. 
- O mar nunca aqui chega - tinha dito o dono da casa. - Quando é das águas vivas, berra lá fora como um danado. Mas aqui, Senhor. Aqui não tem ele licença de chegar.» 
«A verdade é que são quase duas horas e amanhã não sei como vai ser para me levantar. Escuta...» 
«Que é?»          
«Não estás a ouvir passos?» 
«Passos?» 
«Sim. Parecia mesmo gente lá dentro, na sala. Se soubesses os sustos que apanho quando estou com insónias. A Nanda lá nisso é um exagero, eu nunca seria capaz de te acordar...mas, enfim, ela lá sabe. O que é certo é que se entendem à maravilha um com o outro. E isso, Quim, apesar de ser a tal tipa, que tu dizes. Também, ainda estou para ter uma amiga que na tua boca não seja uma tipa ou uma galinha.»
[...]
“A rapariga pôs-se séria de repente.”  Ele tem gestos nervosos:
– É estranho, mas não sei como te hei-de dizer...
– Oh, não digas, Paulo.
Só nesse momento a pôde ver com clareza. Estava a sorrir, o nariz tremendo ao de leve.
– Não é preciso – murmurava ela então. 
– Eu também tenho pensado nisso muitas vezes. Talvez, sei lá, talvez eu mesma to dissesse. 
[...]
“Acabaste, Quim?”
“Sim, acabei.”
“E é bom, o livro?”
“É uma história de dois jovens apaixonados. Dois tipos novos.”
“Contas-ma Quim? É capaz de contar a história à sua mulherzinha?”
“Ora, quase não tem que contar. É um rapaz que está na praia com uma rapariga.”
“E depois? Conta, não sejas chato.”
“Depois vão tomar banho. Á noitinha, quando o sol está mesmo a desaparecer”.
“À noitinha? Tu não estás bom da cabeça, Quim.”
“Verdade. À noitinha.”
“Mas isso é só nos filmes dos milionários, lá nos mares do sul. Só aí é que há banhos à noite. Ou nas piscinas, quando está tudo bêbedo.” 
“Não, estes não estavam bêbedos nem eram milionários.”
“Eram malucos. Ou então faziam isso para armar. Não me queres convencer que acreditas numa coisa dessas.”
“Claro que acredito. Porque não?”
“Pobre Quim. O meu Quim deu agora em maluquinho. Deu em maluquinho, não deu?”
“Quieta, Lisa.”
“Deu em maluquinho, pois. Mas eu sou a mulherzinha dele e vou guardá-lo muito bem guardado para que não fuja para a praia como os maluquinhos. Não é?”
“Quieta, Lisa.”
Arrumou o livro na mesa-de-cabeceira e apagou a luz.
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José Cardoso Pires,  Jogos de Azar,  Lisboa, 
Publicações Dom Quixote, 1999 (7ª ed.).