Para uma pessoa Etel era a mais bela e desejável das mulheres. Ela, porém, ignorava-o. Se soubesse, se tivesse ao menos uma leve suspeita daquilo que os olhos dele, demorando-se nos seus olhos, procuravam em silêncio revelar, às vezes esconder, outras insinuar a medo, se isso acontecesse, é natural que o fitasse com mais atenção, um pouco estupefata da ousadia, ou deixasse mesmo - voluntária e definitivamente – de o olhar e de falar com ele. Porque Vitorino, embora freqüentasse o último ano da escola comercial, nem por isso deixava de ser a “gente bem” da cidade, categoria essa em que Etel estava incluída, o filho do antigo cozinheiro do hotel. Como, porém, não sabia nem suspeitava do quer que fosse, Etel continuava a falar-lhe com um à vontade desolador – ou consolador- e mesmo a perguntar-lhe, com o seu ar afável, mas distante de rapariga bem nascida, de, como se dizia, ele sempre namorava a Fulaninha. Tantos outros baldes de água fria no coração amante de Vitorino, que fazia o possível por sorrir, mesmo amarelo, e responder qualquer coisa adequada, no mesmo tom inócuo e puramente lúdico.
Nos dias em que se travavam esses diálogos mais ou menos tontos, mas para ele tão preciosos, regressava sempre a casa calado e amargo após o entusiasmo, e com uma grande vontade de morrer. Eram os dias em que, fechado à chave no seu quarto modesto, passava em revista, estudando-lhe os prós e os contras – primeiro uns, depois os outros – todas as possibilidades de pôr termo àquela existência morna e sem interesse onde nunca haveria Etel: o gás, os pulsos cortados com uma lâmina, o tubo de Aspirina. Pensava também, minuciosamente, recitando a meia voz algumas frases mais significativas, na carta que escreveria a Etel nos últimos instantes, confessando-lhe o seu desesperado amor. Estacava sempre, porém, a boa distância do precipício. Tentava-o, afinal de contas, a vida ainda não vivida e o desejo de tornar a ver Etel, de falar novamente com ela, mesmo de assuntos superficiais e dolorosos, que nunca conduziriam a nada.
Em dias mais serenos, sobretudo quando não a encontrara, conseguia encarar quase friamente e com a objetividade necessária, o seu caso, e mesmo troçar um pouco de si próprio. Como podia Etel amá-lo? Pensava nesses dias. Era feio, pobre, de baixa condição. Nunca fora excepcional em coisa alguma, e na escola comercial ia passando à justa. Ora não havia na cidade, por mais que pensasse, ninguém que merecesse Etel. Se ela gostasse dele, não seria quem era. Por que não afastar então esse estúpido sonho que tomara posse do seu corpo e do seu coração? Isto pensava Vitorino em dias calmos. Mas depois encontrava-a, falava com ela, falavam-lhe dela e tudo voltava ao mesmo. A mãe olhava-o às vezes tristemente, quando o julgava distraído. Saberia do seu amor por Etel? Cria bem que não. No entanto, certa noite, beijou-o mais demoradamente quando foi ajeitar a roupa, e depois sentou-se mesmo na borda da cama e falou-lhe de certa rapariga que era boa e bonita, um encanto, mesmo talhada para ele.
- Mas eu não quero casar, mãe, disse Vitorino, encolhendo molemente os ombros.
- Todos se casam! Respondeu ela com um suspiro resignado, levantando-se.
–Todos. Mais tarde ou mais cedo.
Foi no dia seguinte que ele soube que Etel fora vista na última semana com um engenheiro, de apelido inglês, recém-chegado à cidade, onde ocupava um cargo importante numa grande empresa. Sempre pensara que nunca teria Etel para si, mas não lhe ocorrera que outro homem a conquistasse com tanta facilidade. Do pé para a mão, por assim dizer, e de maneira tão ostensiva que as vizinhas afiaram as línguas e se puseram a utilizá-las com atividade excepcional. Foi um choque terrível para Vitorino. “Não pode ser”, dizia sozinho, de cabeça nas mãos e a soluçar. “Não pode ser”. Podia. E passou a encontrá-la por toda a parte, sozinha com o engenheiro, um homem alto e muito bem vestido que lhe pareceu odiosamente sedutor.
Agora que Etel estava perdida para ele e de certo modo para o pequeno mundo de que faziam parte, a idéia da morte deixou de obcecar Vitorino. Morrer tornara-se por assim dizer um ato gratuito. Ela era tão feliz que talvez nem desse pelo seu desaparecimento, e a carta que lhe escreveria, o mais que podia era provocar nela um “pobre rapaz!” dito ou pensado de passagem, à pressa. Ou talvez que, para se fazer valer, também era possível, a mostrasse ao noivo. Seria uma boa peça para o seu palmares de mulher. Poucas se podiam gabar de a possuir.
Vitorino viveu, portanto, mas desinteressadamente. Perdeu o ano. O padrinho, que lhe pagava os estudos – o pai morrera era ele pequeno – retirou-lhe a mesada. Que trabalhasse, não era mais do que os outros e a ele ninguém lhe havia pago um curso. Vitorino empregou=se. Entretanto, pessoas nasciam e morriam, pessoas amavam-se e esqueciam-se. Ele continuava a amar Etel.
-Por que não lho disseste enquanto era tempo? Perguntou-lhe a mãe, com quem mum dia , por fim, se abrira.
Ele não respondeu, porque isso era difícil e não sabia muito bem o que havia de responder. Dizer-lho? Ela, Vitorino? E sabia que uma razão houvera, e bem forte, para se ter calado. Não queria, no entanto, pensar nisso, receava tais pensamentos e as conclusões a que eles o podiam conduzir.
Um dia qualquer o engenheiro anunciou a sua partida, e os notáveis da cidade ofereceram-lhe um almoço de despedida com lagosta e discursos laudatórios. Depois, logo a seguir, começou a constar que o seu caso com Etel havia acabado e que pedira transferência de propósito para se ver livre dela. Humilhada, Etel não apareceu no primeiro baile da época e as outras raparigas sorriram discretamente. “Coitada!”, lamentavam-na sem piedade. “Já se via casada com o engenheiro. Ela que com toda pose não tem onde cair morta.”
- “O que se lhe havia de meter na cabeça”, comentaram as mães, esparramadas nas cadeiras de palhinha em volta do salão, e vestidas com os seus trajes domingueiros, a estalar pelas costuras porque todas elas tinham engordado ultimamente. Sentiam-se um pouco felizes com aquele fracasso sentimental, porque as filhas delas nunca tinham tido um pretendente tão categorizado. Uma das senhoras, a mãe da rapariga “que era mesmo talhada para ele”, chamou Vitorino de parte e perguntou-lhe em grande mistério se já sabia “da Etelvina”.
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-”Não, o que foi?” disse ele, fingindo um à vontade que estava longe de sentir.
-“Que acabou o namoro com o engenheiro. Enfim, ele acabou o namoro com ela, o que não é bem o mesmo.”
-“Ah, sim, ouvi qualquer coisa.”
-“E é só esse o efeito que lhe faz!” exclamou a dama, mostrando os dentes muito brancos sob o buço forte. “Estes homens são verdadeiros cataventos. Um dia para o sul, no outro para o norte. Ah, a pobre Etelvina não tem muita sorte com os apaixonados!
Vitorino riu um pouco, para tomar uma atitude, e depois foi dançar com a rapariga talhada para ele, que também lhe falou de Etel com voz doce e alguma ferocidade. Aquela pobre Etelvina, tão boa rapariga, não é verdade, e bonita, sem dúvida, mas não prendia homem nenhum, ele já tinha reparado? Havia mulheres assim e a Etelvina era uma delas. Lamentava-a sinceramente porque era muito, muito sua amiga.
Ele dançava apertando-a muito contra si, cheio de raiva inconsciente. Apertava-a tanto que ela se desprendeu e se quis sentar, dizendo-lhe que se sentia um pouco tonta. Mais tarde contaria que o filho do cozinheiro tinha se atrevido, ora vissem lá, sem compreender que ele a apertava contra si por ódio.
O afastamento do engenheiro alegrava-o bastante e restituíra-lhe, ao mesmo tempo, a antiga angústia. No escritório muitas vezes lhe chamavam a atenção porque se esquecia do que estava a fazer e o seu olhar atravessava as pessoas e as paredes, fugindo para bem longe daquele lugar.
-“Então, senhor Vitorino, essa carta? Em que diabo está o senhor a pensar?”
Em Etel, evidentemente, mas isso ignorava-o o patrão, que não descia a interessar-se pela vida privada dos seus assalariados e muito menos por sua vida amorosa.
[...]
Um dia, o padrinho morreu e, para espanto de todos e indignação de muitos, deixou a Vitorino tudo o que possuía. Era a riqueza. Que faria com tanto dinheiro? Não era ambicioso e nunca lhe passara pela cabeça que tal coisa pudesse acontecer, porque o padrinho fizera sempre constar que a sua fortuna iria para as casas de caridade. Vitorino não se habituara, pois, a sonhar com bens materiais, faltava-lhe o treino. Pareceu-lhe por isso muito difícil e embaraçoso o seu futuro de homem rico. Teria rendas a receber, contribuições a pagar, o diabo.
-“Por que não casas com a Etel?” perguntou-lhe um dia a mãe.
Vitorino olhou-a num grande espanto. “Com Etel?” respondeu pasmado.
-“Sim, com a Etel, porque não? O que é ela mais do que tu, uma rapariga que não tem onde cair morta?” disse a mãe, já na sua nova perspectiva de mulher rica.
Vitorino sentiu o coração bater-lhe com força no peito e de momento não soube o que dizer, nem em que pensar. Depois foi serenando a pouco e pouco e deixou-se ficar onde estava, a coordenar as idéias. A mãe voltara para a cozinha e ele ficou só com os seus pensamentos. Por que não, afinal de contas? Etel era pobre, embora de boas famílias – gente fina, como se dizia - , e depois daquela história com o engenheiro, ninguém mais tinha aparecido a procurá-la. Por que não lhe pediria que casasse com ele?
Nos dias seguintes aperfeiçoou as suas meditações e resolveu que lhe falaria no domingo. Mas, conforme os dias iam passando e o domingo ia ficando mais próximo, foram aumentando os receios de Vitorino. Qual seria a resposta dela? Dir-lhe-ia, naturalmente, que não, nem outra coisa era de esperar. Etel era Etel e ele era ele, um pobre rapaz que por acaso recebera muito dinheiro e nem sequer sabia como gastá-lo, nada podia haver de comum entre ambos. Etel dir-lhe-ia que não, mas como? De que palavras se serviria? Vitorino sabia, porém, de um saber lá de dentro, que ela ficaria de certo modo feliz vendo-se amada mesmo por ele. Andava tão deprimida nos últimos tempos...
Telefonou-lhe pois no domingo e a sua mão tremia ao marcar o número dela.
-“Está?” ouviu-a dizer.
-“Sou eu, o Vitorino. Desculpa se te incomodo, mas tenho uma coisa importante para te perguntar.
Ela ficou encantada.
-“Importante, dizes tu?”
-“É que gosto de ti. Queres casar comigo?” Dissera aquilo assim de repente, com ar de quem pede desculpa, porque tinha medo de se arrepender ou de a sua timidez o atraiçoar, impedindo-o de ir até ao fim. Do outro lado houve uma pausa e depois a voz de Etel perguntou, em pouco sumida:
-“Isso é verdade?”
-“Foi sempre verdade. Desde que te conheço. Mas tive receio. Nota que eu acho natural que tu...
Etel interrompeu-o e disse: -“Creio que vou casar contigo, Vitorino.”
Ele ouviu-a e ficou hirto e vazio de pensamentos e de palavras. Quando pôde falar, quando isso lhe foi possível, murmurou uma frase confusa em que queria mostrar a sua alegria e despediu-se apressadamente. Qualquer coisa como “Estou muito feliz, Etel. Até amanhã.”
Foi tudo. Depois desligou o telefone e sentou-se. Ficou assim longo tempo, como que esquecido, e sentia-se triste, desconsolado e árido. A mãe apareceu a limpar as mãos no avental e perguntou-lhe se tinha falado. Depois, vendo-o tão abatido, pensou que Etel se lhe negara. –“Que respondeu ela?” perguntou, apesar disso, ressentidamente. Ele não respondeu, talvez mesmo não a tivesse ouvido. A última frase que tivera eco em si não fora sequer a sua “Estou muito feliz, Etel” – feliz, ele! – Não fora essa, mas a que ela lhe respondera e que nunca pensara ouvir um dia: “Creio que vou casar contigo, Vitorino.” Palavras de Etel, como era possível?
A mãe, na sua frente, falava. Ele ouvio-a, de súbito, disse-lhe que não se ralasse, que essa toleirona (era a Etel que se referia) não era afinal de contas nenhuma perfeição, tinha quase trinta anos e dera muito que falar com o tal engenheiro. Ele, Vitorino, podia arranjar melhor. E Vitorino compreendeu, de súbito, que Etel tinha a idade que a mãe dissera, não era tão bela como ele durante anos a vira e muita coisa se tinha dito a seu respeito. Sentiu também que deixara de a desejar e que o seu rosto, que sabia de cor, e que a sua voz, que há pouco lhe dissera ao ouvido as palavras tantas vezes sonhadas, tinham de súbito deixado de ter para ele qualquer significado profundo e eram uma cara e uma voz como tantas outras".
(Seu amor por Etel. Lisboa: Ed. Movimento, 1967, p. 7-19).
COMENTÁRIO:
Maria Judite de Carvalho distingue-se entre os melhores contistas portugueses contemporâneos. O conto "Seu amor por Etel" é dos primeiros escritos pela contista e também um dos que oferece um final epifânico de interesse para quem estuda este recurso literário.
Filho do cozinheiro do hotel, já falecido, Vitorino pertence a um estrato social considerado “inferior” pela “gente bem” da cidade. Apaixonado por Etel, ele não tem a menor chance de conquistar a moça, pertencente a uma classe social privilegiada e preconceituosa que faz dela uma figura inacessível. Portanto seu amor por Etel é um sonho irrealizável, sobrevive, silenciosamente, em sua fantasia. Mas, entrou na vidinha apagada e sem esperanças do rapaz um elemento capaz de promover prodigiosa mudança em sua vida – o dinheiro – uma fortuna inesperadamente herdada por Vitorino.
Para a sociedade capitalista, o dinheiro é o valor absoluto, capaz de transformar situações que parecem definitivas. O dinheiro produz milagres, nivelas as diferenças, elimina as distâncias, transforma defeitos em virtudes e tem poder de mudar a personalidade do indivíduo. Vitorino pediu a moça em casamento e este foi aceito. A resposta que em outros tempos teria feito Vitorino exultar de alegria, paradoxalmente, agora o deixa frio, “vazio de pensamentos” e triste.
A aceitação da moça assinala a ruptura total de Vitorino com a fantasia que o mantinha iludido e impedido de ser feliz. Este é o ponto alto do conto, é o momento em que ocorre a epifania, é o momento de revelação: Ele descobre que amava uma Etel que só existia na idealização que, durante anos, ele alimentou, amava uma ilusão, uma pessoa que só existia em sua fantasia. Quando ela se torna acessível, quando ele pode tê-la, o seu sonho se extingue, a fantasia evapora-se e ele pode enxergar seus reais sentimentos. A Etel real não desperta o mínimo interesse em Vitorino. Sentiu também que a deixara de desejar, que ela não significava mais nada para ele. A epifania é positiva, na medida em que é portadora da libertação de Vitorino, abrindo-lhe a possibilidade de ser feliz
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