Vale observar como o último parágrafo do conto expressa o repúdio de Eça de Queirós ao Romantismo e ao adultério da mulher, manifestados na pontuação, pelo excesso de vírgulas, frases e períodos curtos e adjetivação pesada. Esse conjunto de elementos expressivos dá conta do aceleramento do discurso. As palavras e frases parecem sair de supetão do fundo da cólera e da execração do narrador em relação à Maria da Piedade após a sua degradação:
“A Santa tornava-se Vênus.
E o romanticismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços: - e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica. “No fim, Maria da Piedade acaba por se tornar uma mulher adúltera, com um “praticante da botica”, deixando de cuidar da casa, do marido nem dos filhos. “Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora, deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe - para andar atrás do homem, um maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.”
O narrador preocupa-se em ressaltar, no início do conto as qualidades e virtudes de Maria da Piedade, através da opinião pública a respeito da personagem principal“... era considerada em toda a vila como "uma senhora modelo" [...] “para todos na vila ela era uma santa, uma mulher virtuosa e perfeita. [...] “algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata.” [...]O farmacêutico afirmava: — É uma santa! É o que ela é!
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Tudo isso para reforçar o aspecto demasiado casto, virtuoso, sublime, superior, puro, angelical e, porque não, romântico desta personagem descrita como as mulheres idealizadas petrarquianas, resgatadas pelo romantismo oitocentista. “era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e doce.” Esta claridade que emana da figura de Maria da Piedade, contrasta com o ambiente de escuridão em que vive numa casa de aspecto lúgubre, exalando a doença por todos os cantos, e ela com seus pesados vestidos pretos. Na verdade, a jovem mulher é a luz no fim do túnel para aquela família de desgraçados de toda sorte. Enfim, sua vida é triste, solitária e sem emoções. Sequer ela sabe o quanto é infeliz, pois nunca conhecera outra forma de estar no mundo. Do ambiente tenebroso na casa dos pais, ela simplesmente passara para outro obscuro e sem perspectivas de mudança. Quando conhece o lado alegre, iluminado e feliz da vida, conhece também o caminho que a conduzirá a outro tipo de escuridão, que emana da execração pública, o que no século XVIII era um peso na vida da mulher, proscrita da sociedade e alvo do desprezo das pessoas.
O conto configura-se como uma alternância de luz e sombra, que mais parece uma batalha entre o bem e o mal, onde a escuridão Romântica é, aos poucos, vencida pela luz da verdade Realista. A personagem é conduzida das Trevas ao Paraíso.
Com João Coutinho, as trevas: “Vestida de preto numa cada escura.
O Paraíso, com Adrião: “... era um dia de março fresco e claro...” “O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do meio-dia em que eles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras...” O cenário é idílico... Adrião conduzira Maria da Piedade a um ambiente paradisíaco e romântico – O Moinho – onde ocorrerá o clímax da narrativa: o beijo “profundo e interminável” de Adrião em Maria da Piedade. O beijo fatal. “Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta”. Esse beijo desencadeou todo o processo de decadência moral de Maria da Piedade, despertou-a para o desejo, para a necessidade de amar e ser amada, para a sexualidade e para a sua própria carência afetiva. Em poucos meses, a Santa se tornara uma Vênus.
Maria da Piedade retrata, de certa forma, as mulheres de antigamente. Uma grande maioria casava para poder sair da miséria da casa dos pais, para tentar uma nova vida, acabando por se ver envolvidas numa vida de trabalho e pouca felicidade. É curioso ver como Maria da Piedade tratava do marido e dos filhos sem que isso aparentemente a perturbasse muito, pois o encarava como uma obrigação, algo que lhe cabia fazer e como algo normal para sua existência de mulher, conforme os padrões sociais e familiares da época.
O aparecimento de Adrião serviu para que Maria da Piedade se apercebesse de que não era obrigada a viver toda a vida sem amor feliz. Ela absorve o discurso dos romances de Adrião . Capta a idéia do amor, da fantasia, do sonho, do perfil forte das mulheres dos romances da época e dá um novo caminho ao seu cotidiano entediante e infeliz.
Talvez não se tenha apaixonado verdadeiramente por Adrião, mas sim pelo que ele lhe mostrou, ou seja, uma possibilidade de viver seus sentimentos, de ter emoções, de se sentir feliz. Porém, estes valores românticos vão estabelecer um desvio de seus valores rotineiros que a mantinham dentro dos padrões ditados pela conveniência moral e social.
A liberdade do sonho romântico desvirtua o caminho moral de Maria da Piedade. Em vez de um homem amoroso, apaixonado e cavalheiro como os que conhecera nos romances de Adrião, ela encontrou homens comuns, ávidos por sexo, aproveitadores que a levaram à promiscuidade.
Maria da Piedade acreditou ingenuamente que o poderia ser feliz com qualquer homem que conhecesse. E não importando de que jeito e tão pouco com o mundo e convenções que ela seguia. Procurou fazer o seu mundo de prazer carnal imediato e assim, da mesma forma, rapidamente fluiu de mulher modelo para mulher adúltera, achando-se feliz. No final do conto, ironicamente, ela está envolvida com um homem medíocre, de aparência repulsiva e que, aparentemente não valia grande coisa, alguém que só estava com ela por interesse (“e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.”).
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Zenóbia Collares Moreira
Um comentário:
Hi, I am Thomas Gittins from Cornell University. Glad to read your blog.
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