Feliz aniversário, conto de Clarice Lispector está incluído em na obra Laços de família, de 1960. Um dos mais brutais e perturbadores relatos escritos pela autora.
Clarice Lispector tem a maestria de revelar as transformações dos sujeitos de modo profundo, denso, transcendente, epifânico. Suas obras colocam à mostra os grandes conflitos do ser humano, explorando com muita sutileza as regiões mais profundas e inexprimíveis da alma, aliando razão e sensibilidade por meio de uma linguagem extremamente poética.
Em Feliz aniversário, a infelicidade é a matéria secreta que perturba e lateja na felicidade de uma festinha de aniversário de D. Anita, uma senhora que completa oitenta e nove anos, e seus familiares reúnem-se para comemorar a data. Zilda, a filha com quem a aniversariante mora, organiza a casa para receber a família, prepara tudo com antecedência para que nenhum imprevisto aconteça. Pouco a pouco os convidados vão chegando; os filhos, as noras, os netos, quase todos ali fingem comemorar o aniversário. A família, vinda do subúrbio, mas também de Ipanema, chega aos poucos a Copacabana para a festa de D. Anita, a quase nonagenária. Cadeiras dispostas ao longo das paredes, uma mesa típica de festa de família, guardanapos coloridos, balões, groselhas e alusões ao "Happy Birthday".
Logo depois do almoço, a aniversariante é encarcerada em seu vestido de festa, com presilha, broche e um odor forte de água de colônia.
A filha Zilda é um personagem manipulado pelo dever de realizar uma festa de aniversário para sua mãe, que completa oitenta e nove anos, arruma a casa, ocupa-se com os preparativos e convida os familiares para a comemoração. Nota-se que, no nível do parecer, a comemoração simula-se prazerosa, mas a manipulação de Zilda não se dá pelo querer-fazer, ou seja, realizar a festa de aniversário da mãe, mas sim pelo dever-fazer. Assim, no nível do ser, ao focalizar o ponto de vista de Zilda, o narrador revela-nos o quanto ela se sente revoltada por ter de arcar com essa tarefa solitariamente:
No lugar de uma comemoração prazerosa, nota-se que não só Zilda, mas todos os parentes, os familiares estão apenas cumprindo tarefas (todos também manipulados pelo dever). Um outro exemplo é a “nora de Olaria” que cumprimenta com cara fechada os da casa.
O papel que Zilda sente-se no dever de realizar é manter, no nível do parecer, a impressão de que estão vivos os laços de família, e a festa de aniversário é a figura do texto que manifesta essa confraternização, que, no nível do ser, se configura como mentirosa – “parece, mas não é”. Assim, a festa, que deveria ser um momento de união e confraternização, não acontece como confraternização, mas como uma comemoração convencional. Nesse sentido, o enunciador parece levar-nos a uma sanção negativa frente à forma de agir da família, e a aniversariante, lúcida e nada ingênua, decepciona-se com os familiares, consegue perceber o papel que cada um está representando, percebe o jogo entre os dois níveis da modalização veridictória; a do parecer, em que há um falso envolvimento dos convidados para a comemoração, e do ser, em que todos estão cumprindo tarefas, não sendo possível, assim, um verdadeiro envolvimento emocional entre eles.
Em contraste com todas as manifestações de carinho, admiração, afeto que recebe, a velha se conserva em silêncio. Silêncio enigmático e ameaçador. A barulheira de filhos e netos não a perturba. Vista de fora, é só uma velha feliz, que se aproxima dos noventa, ainda inteira, cercada dos descendentes queridos que celebram sua longevidade, protegida entre os seus.
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No fundo, a velha despreza os seres opacos, azedos, infelizes que gerou. Sujeitos treinados só para macaquear a felicidade, enquanto sofrem por dentro sem nem mesmo perceber que sofrem. Seres que não suportam o pensamento, que lidam mal com os sentimentos e para quem a vida nada mais é que a sustentação de um script.
O narrador nos põe em contato constantemente com o estado de decepção e de angústia de D. Anita, cujo papel actancial é o de personagem sancionador da família, o que se figurativiza no texto por meio de seu monólogo interior, em que se revela o julgamento negativo que imprime à família durante a festa.
“A velha não se manifestava.” (C.L., 1998, p.57),
“ E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.” (C.L., 1998, p.59),
“Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse.”(C.L., 1998, p.60).
“ Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão”. (C.L., 1998, p.60-61).
O ato de “cuspir no chão, é a figura que manifesta, no nível discursivo, o fato de os laços de família não se sustentarem mais, extremamente fragilizados no momento em que se encontram . Com essa atitude, por outro lado, a velha senhora provoca a raiva da filha Zilda, que teme a sanção negativa dos irmãos.
“- Mamãe! Gritou mortificada a dona da casa...., sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia.” (C.L., 1998, p. 61).
A família mostra-se perdida diante da polêmica da ruptura que a velha senhora empreende, pois , com sua cólera, faz cair as máscaras da falsidade que adornam o rosto de seus componentes.
O narrador demonstra, por meio da figura “peso”, que todos ali estavam também ansiosos para irem embora.
As reações violentas da velha interrompem antecipadamente a festa. O ritual ainda se estende um pouco mais, os atores insistem e se esforçam para se ater ao script dos aniversários e sustentar uma felicidade que já foi escandalosamente denunciada. Felicidade que, como um bolo mal batido, desandou. Os filhos, que quase nunca se vêem ou se falam, apressam-se nas despedidas. Um deles presenteia a velha com um doloroso e irônico "até o ano que vem".
Cantam os parabéns, “festejam”, logo em seguida se despedem e vão embora.
Percebe-se, então, que a festa de aniversário se processa apenas no nível do parecer. O título do conto Feliz aniversário sugere a leitura irônica dos “laços de família” que, na visão do enunciador, se tornam fragilizados, pois a confraternização familiar não acontece verdadeiramente.
A velha senhora de Clarice Lispector, desperta a simpatia pela coragem e pelo olhar crítico que despeja sobre os sentimentos burocráticos de sua família, e ainda pelo modo como se contém até que, não cabendo mais em si, transforma todas as palavras que lhe entravam na mente numa grosseira cusparada, despertando, também por isso, e pelos sentimentos duros, e pela sua burocracia interior (ao fim do relato, tudo o que se pergunta é se haverá jantar...), a repulsa. Ou, pelo menos, provoca no leitor uma série de sentimentos ambíguos e incompatíveis entre si.
A riqueza do conto está justamente aí: ele não só não oferece, mas também não permite qualquer tipo de solução. Em vez de fechar o caminho do leitor, com uma moral, uma lição, uma teoria, uma tese, ele o rasga, o amplia, o liberta. História breve e de aparência simples, ela conduz a sentimentos paradoxais que, ao fim, só resta suportar.
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Fontes: Luciana Sciarretta, Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP | Revista Idiossincrasia)
Clarice Lispector tem a maestria de revelar as transformações dos sujeitos de modo profundo, denso, transcendente, epifânico. Suas obras colocam à mostra os grandes conflitos do ser humano, explorando com muita sutileza as regiões mais profundas e inexprimíveis da alma, aliando razão e sensibilidade por meio de uma linguagem extremamente poética.
Em Feliz aniversário, a infelicidade é a matéria secreta que perturba e lateja na felicidade de uma festinha de aniversário de D. Anita, uma senhora que completa oitenta e nove anos, e seus familiares reúnem-se para comemorar a data. Zilda, a filha com quem a aniversariante mora, organiza a casa para receber a família, prepara tudo com antecedência para que nenhum imprevisto aconteça. Pouco a pouco os convidados vão chegando; os filhos, as noras, os netos, quase todos ali fingem comemorar o aniversário. A família, vinda do subúrbio, mas também de Ipanema, chega aos poucos a Copacabana para a festa de D. Anita, a quase nonagenária. Cadeiras dispostas ao longo das paredes, uma mesa típica de festa de família, guardanapos coloridos, balões, groselhas e alusões ao "Happy Birthday".
Logo depois do almoço, a aniversariante é encarcerada em seu vestido de festa, com presilha, broche e um odor forte de água de colônia.
A filha Zilda é um personagem manipulado pelo dever de realizar uma festa de aniversário para sua mãe, que completa oitenta e nove anos, arruma a casa, ocupa-se com os preparativos e convida os familiares para a comemoração. Nota-se que, no nível do parecer, a comemoração simula-se prazerosa, mas a manipulação de Zilda não se dá pelo querer-fazer, ou seja, realizar a festa de aniversário da mãe, mas sim pelo dever-fazer. Assim, no nível do ser, ao focalizar o ponto de vista de Zilda, o narrador revela-nos o quanto ela se sente revoltada por ter de arcar com essa tarefa solitariamente:
No lugar de uma comemoração prazerosa, nota-se que não só Zilda, mas todos os parentes, os familiares estão apenas cumprindo tarefas (todos também manipulados pelo dever). Um outro exemplo é a “nora de Olaria” que cumprimenta com cara fechada os da casa.
O papel que Zilda sente-se no dever de realizar é manter, no nível do parecer, a impressão de que estão vivos os laços de família, e a festa de aniversário é a figura do texto que manifesta essa confraternização, que, no nível do ser, se configura como mentirosa – “parece, mas não é”. Assim, a festa, que deveria ser um momento de união e confraternização, não acontece como confraternização, mas como uma comemoração convencional. Nesse sentido, o enunciador parece levar-nos a uma sanção negativa frente à forma de agir da família, e a aniversariante, lúcida e nada ingênua, decepciona-se com os familiares, consegue perceber o papel que cada um está representando, percebe o jogo entre os dois níveis da modalização veridictória; a do parecer, em que há um falso envolvimento dos convidados para a comemoração, e do ser, em que todos estão cumprindo tarefas, não sendo possível, assim, um verdadeiro envolvimento emocional entre eles.
Em contraste com todas as manifestações de carinho, admiração, afeto que recebe, a velha se conserva em silêncio. Silêncio enigmático e ameaçador. A barulheira de filhos e netos não a perturba. Vista de fora, é só uma velha feliz, que se aproxima dos noventa, ainda inteira, cercada dos descendentes queridos que celebram sua longevidade, protegida entre os seus.
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No fundo, a velha despreza os seres opacos, azedos, infelizes que gerou. Sujeitos treinados só para macaquear a felicidade, enquanto sofrem por dentro sem nem mesmo perceber que sofrem. Seres que não suportam o pensamento, que lidam mal com os sentimentos e para quem a vida nada mais é que a sustentação de um script.
O narrador nos põe em contato constantemente com o estado de decepção e de angústia de D. Anita, cujo papel actancial é o de personagem sancionador da família, o que se figurativiza no texto por meio de seu monólogo interior, em que se revela o julgamento negativo que imprime à família durante a festa.
“A velha não se manifestava.” (C.L., 1998, p.57),
“ E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.” (C.L., 1998, p.59),
“Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse.”(C.L., 1998, p.60).
“ Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão”. (C.L., 1998, p.60-61).
O ato de “cuspir no chão, é a figura que manifesta, no nível discursivo, o fato de os laços de família não se sustentarem mais, extremamente fragilizados no momento em que se encontram . Com essa atitude, por outro lado, a velha senhora provoca a raiva da filha Zilda, que teme a sanção negativa dos irmãos.
“- Mamãe! Gritou mortificada a dona da casa...., sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia.” (C.L., 1998, p. 61).
A família mostra-se perdida diante da polêmica da ruptura que a velha senhora empreende, pois , com sua cólera, faz cair as máscaras da falsidade que adornam o rosto de seus componentes.
O narrador demonstra, por meio da figura “peso”, que todos ali estavam também ansiosos para irem embora.
As reações violentas da velha interrompem antecipadamente a festa. O ritual ainda se estende um pouco mais, os atores insistem e se esforçam para se ater ao script dos aniversários e sustentar uma felicidade que já foi escandalosamente denunciada. Felicidade que, como um bolo mal batido, desandou. Os filhos, que quase nunca se vêem ou se falam, apressam-se nas despedidas. Um deles presenteia a velha com um doloroso e irônico "até o ano que vem".
Cantam os parabéns, “festejam”, logo em seguida se despedem e vão embora.
Percebe-se, então, que a festa de aniversário se processa apenas no nível do parecer. O título do conto Feliz aniversário sugere a leitura irônica dos “laços de família” que, na visão do enunciador, se tornam fragilizados, pois a confraternização familiar não acontece verdadeiramente.
A velha senhora de Clarice Lispector, desperta a simpatia pela coragem e pelo olhar crítico que despeja sobre os sentimentos burocráticos de sua família, e ainda pelo modo como se contém até que, não cabendo mais em si, transforma todas as palavras que lhe entravam na mente numa grosseira cusparada, despertando, também por isso, e pelos sentimentos duros, e pela sua burocracia interior (ao fim do relato, tudo o que se pergunta é se haverá jantar...), a repulsa. Ou, pelo menos, provoca no leitor uma série de sentimentos ambíguos e incompatíveis entre si.
A riqueza do conto está justamente aí: ele não só não oferece, mas também não permite qualquer tipo de solução. Em vez de fechar o caminho do leitor, com uma moral, uma lição, uma teoria, uma tese, ele o rasga, o amplia, o liberta. História breve e de aparência simples, ela conduz a sentimentos paradoxais que, ao fim, só resta suportar.
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Fontes: Luciana Sciarretta, Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP | Revista Idiossincrasia)
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