A história narrada é simples: O narrador, um médico do interior, recebe a visita de quatro homens rudes do sertão, liderados por Damázio, conhecido e temido assassino da região. Este quer que o médico, a pessoa culta do lugar, o esclareça acerca do significado da palavra “famigerado”, pois a ouviu de um moço do governo: -Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: famisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... famílias-gerado?
Diante dos jagunços com caras de pouco amigos, o narrador, inicialmente, mal consegue dominar o medo: “Tomei-me nos nervos”, “O medo. O medo me miava”. Mas, logo a onda de medo é controlada por seu temperamento calmo e por sua agilidade mental, típica de pessoas inteligentes que aprenderam a controlar a emoção, como revelam os seguintes trechos: “Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso”; “Convidei-o a desmontar, a entrar”; “Muito demacio, mentalmente, comecei a me organizar.”; “Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios.”; “-Famigerado?- habitei preâmbulos.”;
Claro que o médico pressentiu que a pergunta não era inocente e logo teve a certeza de que a situação era tensa. O facínora queria mesmo saber era se aquela palavra seria motivo para a uma desforra ou não. Temeroso de revelar a verdadeira intenção do moço do governo, ao chamar o jagunço de “famigerado”, o médico resolve mentir, por temer a violência de Damázio contra o tal “moço”. Se tivesse revelado o sentido dicionarizado do termo “famigerado” ao belicoso Damázio, estaria, sem sombras de dúvidas, decretando a sentença de morte do infeliz que o insultou.
Todavia, talvez por causa da insegurança inicial ou por não estar preparado para elaborar uma resposta melhor, assim de supetão, o médico dá um significado positivo. Porém usando duas palavras desconhecidas para o bronco Damázio, afirmando que o termo “famigerado” significa “inóxio”, “douto”. Confrontado com a estranheza do termo “inóxio”, o jagunço sem compreender o significado da palavra, decerto nunca ouvida antes, fica sem saber que “inóxio” significa “inócuo”, “inocente”. Daí, o seu pedido ao narrador para que lhe dê o significado da palavra “famigerado” usando uma linguagem comum, popular.
O narrador, já mais seguro e com domínio da situação, engana o jagunço, dizendo-lhe que a palavra “famigerado” não é ofensiva, significando “célebre”, “notório”, “notável”. O assassino, depois de tranqüilizado e satisfeito com a resposta recebida, agradece e vai embora. Antes, porém, tece um elogio ao saber do médico, dizendo: Não há como as grandezas machas de uma pessoa instruída.
O narrador mentiu e enganou o jagunço ao dizer a verdade: que “famigerado” significa “famoso, importante, que merece respeito”, conforme consta no dicionário, mesmo sabendo que é usado por pouquíssimas pessoas de saber mais aprimorado, pois a maioria usa esse termo de forma equivocada, atribuindo-lhe o sentido de “maldito, “desgraçado”, “perverso”, malvado, etc. É muito provável que tenha sido com esse sentido que o moço do governo usou a palavra famigerado, com a intenção de desqualificar o jagunço mal afamado.
A fala final do narrador deixou nas entrelinhas, este último significado, logo após Damázio pedir-lhe para confirmar se não se constituiu uma ofensa ter sido chamado de “famigerado” e ouve como resposta o narrador dizer: Olhe: eu, com o Sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!.. Aqui vale salientar a esperteza e o refinado humor do narrador, ao fazer uso do significado depreciativo de “famigerado”, que o ignorante Damázio não consegue perceber.
Para o médico a ironia serviu como um sutil desabafo do que realmente desejara ser ao se ver diante do perigoso jagunço: ser tão célebre pela periculosidade, quanto era o temido Damázio, para não correr o risco de ser forçado a confrontado-lo usando como defesa e proteção apenas o poder das palavras e a esperteza de “gambelar” o malfeitor. Este, aliás, ficou satisfeito com a enganosa explicação para o vocábulo que o atormentava.
De fato, mesmo sendo culto, formado e experiente, naquela hora em que se sentiu tomado pelo medo se sofrer uma violência, o que mais queria era ser tão “desgraçado”, tão “maldito” e “perverso” quanto era Damázio. Mas o bandido não tinha a mínima condição para perceber essa verdade, era bronco demais para captar a malícia e a sutileza do enunciado. É por isso que partiu, em sua bendita ignorância, ridiculamente desmanchando-se de felicidade e de alívio, sem se dar conta de que fora enganado pelo médico. Logo ele que, fanfarrão e metido a valentão, se gabava de nunca ter sido “gambelado” por ninguém.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha.
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