20 de agosto de 2010

Comentário do conto Teorema, de Herberto Helder


 Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, ilha da Madeira, no seio de uma família de origem judaica. Poeta, ensaísta e contista, Herberto Helder é autor de vários livros de poesia e de um único livro de contos – Os passos em volta - do qual colhemos “Teorema”. Ele é considerado um dos melhores poetas surgidos no século XX, em Portugal. Além disto, seu livro de contos já teve várias edições esgotadas e reeditadas.

O título da narrativa aponta a ambigüidade que percorre o texto, ensejando leituras diferentes a partir dos dois sentidos advindos dos significados de teorema. Na sua acepção mais evidente, como a veicularam as ciências matemáticas, teorema é uma proposição demonstrável a partir de axiomas, ou seja, uma proposição que, para ser admitida, precisa de demonstração que comprove a evidência da tese. Mas, existe uma forma de perturbar a lógica desse procedimento, por redução do teorema ao “absurdo”, inversão de caminho que, no entanto, chegará à mesma verdade. É este significado o que se coloca para a demonstração da tese que o autor levanta (via absurdo), ou seja: demonstrar, através da inversão da “verdade histórica” – ou daquilo que se tem como tal –, que o crime praticado por razões de Estado (ou políticas) tem uma outra verdade desvelável pelas vias do absurdo.

Tal inversão da verdade começa logo no primeiro parágrafo com as frases proferidas por Pero Coelho referindo-se à Inês de Castro: “Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o”. Ditas pelo assassino de Inês de Castro, tais palavras promovem a inversão da verdade histórica, desmentindo tudo o que foi asseverado pela história oficial e, por extensão, desconstruindo a imagem de Inês e a imagem de Pedro oferecidas por Camões e demais poetas que mitificaram Inês e sua trágica história de amor.

O que sempre fora considerado um crime hediondo, cantado em prosa e em versos, em Teorema passa a ser visto como um ato de suprema relevância em razão da nobreza de seu objetivo: matar Inês, para “salvar o amor do rei”. O que é espantoso, na medida em que assinala uma inusitada conivência entre o rei e o assassino de sua amante. Porém, a cumplicidade entre o rei e Pedro Coelho é confirmada por algumas afirmações do assassino: “Gosto deste rei louco, inocente e brutal”; “O rei olha para mim com simpatia”. Ora, são inexplicáveis os motivos que justificam o sentimento de Pedro Coelho pelo homem que mandou assassiná-lo, como é absurdo esse olhar de simpatia do rei para a sua vítima, diante da brutalidade da punição que o mesmo aplicará ao assassino de Inês.

Tudo isto, no entanto, pode ser admissível se entendermos que a realidade construída pelo autor é alicerçada nos princípios da heterodoxia. Portanto, é a lógica do absurdo um dos caminhos que explicaria o título Teorema, dado ao conto e, a partir daí, viabilizar a compreensão da mensagem que o autor pretende passar ao leitor.

O segundo significado de Teorema seria “o que se pode contemplar”, ou seja: festa e espetáculo, também confirmado, à medida em que o conto é estruturado como espetáculo que se oferece à contemplação das personagens e do leitor. A disposição do cenário na praceta, sob a janela manuelina (“El-rei D. Pedro, o Cruel, está na janela sobre a praceta”) para onde se dirigem o “barbeiro de bigode louro” e a multidão curiosa. É notória a teatralidade que reveste a cena.

Nessa perspectiva, os significados de Teorema se somam ao da revisão que o conto se propõe realizar de um fato que se tornou um mito e, por extensão, do passado histórico português. Tal revisão exige argumentos que seja de tal forma persuasivos, que possam perceber a verdade que é velada pelas aparências e pelo discurso oficial.

Teorema celebra o homem pecador, degradado, decaído, condenado ao inferno pelas leis do catolicismo. A narrativa organiza-se como uma missa negra, parodiando, passo a passo, o ritual da missa católica e algumas passagens da paixão de Cristo.

Vale salientar que a missa negra, praticada por seitas demoníacas, realiza um ritual no qual pessoas são sacrificadas, havendo, portanto, morte com derramamento de sangue. No conto, é o demônio quem detém o poder e comanda as ações das personagens que ocupam o espaço demoníaco: D. Pedro, Pedro Coelho e Inês de Castro, parodiando as três pessoas da “Santíssima Trindade”: O Pai (D. Pedro, por ser o detentor do poder temporal), o Filho (Pedro Coelho: o que é imolado pelo Pai) e o Espírito Santo (Inês: ela é uma pomba, é labareda, chama e fonte).

No final, D. Pedro é o único componente da tríade demoníaca que está vivo, interiorizando em sua pessoa as três personagens que constituem o “mistério” da demoníaca trindade, como sugere o narrador: “ele comeu o coração de Pedro Coelho (o filho) e é dominado pelo “fogo” de Inês (Espírito Santo). Ele também está condenado a arder nas chamas do Inferno: “o seu corpo ir-se-á reduzindo à força do fogo interior [...]. Eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu meu coração. D. Inês tomou conta das nossas almas. No crisol do Inferno manter-nos-emos todos três perenemente límpidos”.

O conto desconstrói a imagem de Inês configurada por Camões, Garcia de Resende, António Ferreira, dentre outros que a mitificaram, o mesmo acontecendo com D. Pedro. Inês, mesmo não participando diretamente da trama narrativa, mesmo ausente, ela é o centro do drama vivido pelos protagonistas. Ela invade as cidades, penetra a literatura e entra na história. A morte eternizou-a.

Vale lembrar que o assassinato de Inês, sempre usado para alimentar a ideologia dominante, é focalizado no conto sob outro ponto de vista: a do assassino que relata a sua morte, perpassando toda a narrativa com um tom de crítica às tradições milenares que ameaçavam se perpetuar e aos valores milenares do catolicismo. A verdade histórica é questionada, os supostos heróis tombam do pedestal, passando tudo e todos pelo crivo de uma leitura desmitificadora que o autor de Teorema faz do passado.