30 de agosto de 2010

Raul Brandão: O Mistério da Árvore.

Esgalhada e seca, os seus frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém se lembrava que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fugia da árvore estarrecida e hirta que havia séculos servia de forca. Em frente ficava o Palácio real, construído num bloco de pedra escura, e só o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica, se pusera a amá-la, a árvore triste que havia séculos servia de forca. Que doença estranha, lenta mas tenaz, matava o Rei?... Só amava os crepúsculos, as agonias da luz, o passado, e a multidão silenciosa vinha vê-lo, ao fim da tarde, de cabeça encostada aos vidros das janelas, fixo o olhar nas águas verdes e limosas e no espectro da árvore levantada diante do Palácio. Tudo que era vivo fugira de ao pé dele, porque o Rei mandava punir a mocidade e o amor, e dez léguas à roda o país tinha sido assolado pelos seus guerreiros brutais. Mandara queimar tudo, devastar tudo no seu reino.Nem uma folha nem uma ave – nem um sinal de vida.
      De pé unicamente a árvore, desde séculos estarrecida e hirta, a árvore maldita que no seu reino servia de forca. No silêncio tumular do Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredores desertos, lentos ou precipitados, conforme o pensamento tenaz que o devorava, gastando pouco a pouco as lages duras do chão. Não podia amar. Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a carne láctea das mulheres: tudo lhe era vedado. Horas atrás de horas se ouviam no Palácio os passos do Rei doente, toda a noite, toda a noite a rondar...Sucedeu que veio a Primavera e todas as árvores, para lá do território assolado, estremeceram e se cobriram de flor. Borboletas nascidas do seu hálito noivavam no azul, e dois mendigos amorosos, de países lendários, entraram e perderam-se, naquela terrapraguenta, ela envolta na poalha dos cabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao seu olhar. Eram pobres. E assim, apenas vestidos, vieram enlaçados com a Primavera, cobrindo a terra erma, que calcavam, de vida e de amor. Eram pobres e felizes. Floresesvoaçavam pela sua nudez, e as macieiras dos quintais deitavam galhos fora dos muros, de propósito para os ver passar. Azul, sonho, entontecimento, toda a atmosfera estremecia. 
      Só o Rei no Palácio deserto vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvores enojavam-no. Queria todo o país negro, deserto e escalvado; e o amor que trespassava a terra e os bichos, a própria morte que tudo transforma, lhe pareciam abominação e afronta. Odiava a vida. Mas deitava-se e sentia palpitar as fragas: os montes eram seios duros, as árvores cabelos ao vento. Para não ver, encerrava-se no Palácio construído dum bloco de pedra, e sozinho ficava então de olhos postos na árvore. Contemplava-a. Como o Rei, ela era seca e hirta – fora-o sempre – e os seus frutos cadáveres ou corvos. À passagem de Abril e dos mendigos, tudo à volta se transformava: só ela quedava inerte diante da vida e do amor, a árvore trágica que havia séculos servia de forca.Um dia o Rei soube que dois seres felizes haviam transposto as fronteiras e mandou-os logo prender. Nas últimas noites sentira-os nos espinheiros túmidos, nos sapos dos caminhos que pareciam extáticos, nas coisas que estremeciam, na noite magnética cheia de murmúrios, no vento que atirava para o castelo ramos de árvores luminosos. Punha -se de ouvido à escuta, e a terra, a noite e o mar sufocados iam talvez falar, iam enfim falar!...
Quando os soldados os trouxeram ao Palácio, com eles entro um bafo novo: cheiravam a sol e a lama dos caminhos e pegava-se-lhes húmus aos pés descalços. A vida rompeu por aquele túmulo dentro pois que iam morrer, dir-se-ia que a morte, em lugar da foice simbólica, pela primeira vez trazia nas mãos um ramo de árvore. Dois mendigos e amavam-se! Nem sequer eram extraordinariamente belos, mas deles irradiava uma força imensa – daquela moça sardenta, com resquícios de palha pegados aos cabelos, daquele homem cuja carne aparecia entre os farrapos. Não davam pelo Rei, não davam pela Morte. Amavam-se. Atreviam-se num país que ele mandara assolar para que nunca mais diante de seus olhos pudesse aparecer a imagem da vida e do amor! Olhou-os o Rei durante alguns minutos em silêncio, e depois fez um gesto aos carrascos, que logo se apoderaram deles e os levaram. Sorriam-se os mendigos cheios de terra e ervas, e, enlevados, olharam um para o outro, ignorando o que se passava em volta – olhos nos olhos, mãos nas mãos... Noite negra, o Rei subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens, restos de mantos esfarrapados arrastavam-se pelo céu. A árvore onde os dois haviam sido enforcados, mal se distinguia no escuro; mas de lá vinha um frémito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos decerto. Em vão reduzira tudo a cinzas – por baixo das cinzas latejava a vida. Toda a terra parecia fermentar. Ouvia murmúrios. Se as árvores falassem! se as árvores e as coisas dissessem tudo que sabem! A água chalrava, perdia-se em fios pela terra. Mas então ele não mandara secar as fontes? Vozes, mais vozes ainda no escuro, a voz baixinha e humilde das árvores cheias de folha, que o vento chegava umas para as outras... Mas então ele não mandara despir para sempre as árvores? Pior... Mais fundo ainda, no negrume opaco da noite, o sussurro da vida – como se ele não tivesse mandado espezinhar a vida!... Encostado à muralha, passou a noite absorto. As nuvens galopavam, o grasnido dos corvos afligia-o... Porque não iria ele também ser macieira, mendigos, húmus? transformar a dor em felicidade? beber o sol arrastado na aluvião da vida? Oh como odiava a mocidade, a ternura, os lábios moços que se beijam!...Só a árvore esgalhada e seca o prendia ainda, a árvore sinistra que no seu reino servia de forca. Ficou até de manhã de olhos postos naquele fantasma triste e enorme, negro como as ideias negras que tecia, seco como a sua própria alma – a árvore desmedida que no seu reino servia de forca... Começaram os cerros a tingir-se de violeta, as árvores a azular, e a forca, em que se absorvia, a destacar-se de entre a névoa, a árvore esgalhada e imensa que havia séculos perdera a seiva e a vida.Súbito ficou imóvel de espanto.
Aquecida com o amor de dois mendigos, tinha o galho em que pendiam enforcados cheiinho de flor. Dura e má como as pragas, juntara no ramo que os cobria toda a flor que a terra assolada não pudera produzir. Era nada, quase nada, algumas flores miudinhas prestes a sumirem-se ao primeiro sopro – era dor estreme e sonho estreme. Nos seus braços haviam sido enforcados muitos desgraçados e as suas raízes mortas pelas lágrimas de aflição. Tolhida com os gritos, não bebia água nem sugava húmus. Vira passar homens, primaveras e reinados, sem se comover, mão arrepelada a amaldiçoar a terra e o castelo. Assistira a transformações de solo, a tempestades, a cataclismos e a guerras, sempre petrificada como a morte – e naquela noite, trespassada pelo amor dos dois mendigos, desentranhara-se em ternura, como se nela se concentrasse toda a paixão, a Primavera e o noivado da terra – a árvore maldita que desde séculos servia de forca. 
( A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore. Lisboa, 1926.)


Comentário
Este conto confronta dois universos absolutamente opostos e inconciliáveis: o universo luminoso dos dois mendigos que representa a alegria, a felicidade, a simplicidade, a pureza, a generosidade e a afetividade. O casal resplandece no cenário bucólico que os rodeia, a forma singela como os dois se relacionam  configura-se como um poema à vida! 
Opondo-se a este, o universo Rei é caracterizado pela atmosfera sombria, sufocante e deprimente que o rodeia. O palácio tem uma arquitetura pesada e despojada que lembra um túmulo, o cenário em que o rei transita é grotesco, degradante e degradado pelos seus desmandos, despotismo, tirania e perversidade. Ao contrário do casal de mendigos, o Rei é a metáfora do vazio interior, da infelicidade, da destruição, do desamor e, mais que tudo, da morte.
A única árvore do reino é desvitalizada, seca, esgalhada, trágica: só serve para ser usada como forca para os sentenciados a morrer pelo monarca. A crueldade, a incapacidade de amar, de procurar para si mesmo o amor e a felicidade que inveja no casal de mendigos levam o Rei a tirar-lhe a vida.
Apesar da morbidez decadentista que atravessa o conto, o autor abriu espaço para a poeticidade romântica, presente na relação de amor vivida pelo casal de mendigos, por sua morte trágica e pela evocação da herança medieval do “mito do amor paixão” que trata da perpetuação do amor além da morte, metaforizada na revivescência da árvore onde foram enforcados os amantes, misteriosamente coberta de flores, como se tivesse recebido em seu tronco e raízes toda a energia vital dos mendigos nela enforcados.
                                      

20 de agosto de 2010

Herberto Helder: Teorema


El-rei D. Pedro, o cruel, está na janela sobre a praceta onde sobressai a estátua municipal do Marquês Sá da Bandeira. Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de joelhos, as mãos amarradas atrás das costas, mas levanto um pouco a cabeça, torço o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico de meu Senhor. Por debaixo da janela onde se encontra, existe uma outra em estilo manuelino, uma relíquia, obra delicada de pedra que resiste no meio do tempo. D. Pedro deita a vista distraída pela praça fechada pelos seus soldados. Vê a igreja monstruosa do Seminário, retórica de vidraças e nichos, as pombas que pousam na cabeça e nos braços do marquês e vê-me em baixo, ajoelhado, entre alguns dos seus homens. O rei olha para mim com simpatia.
Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defender-me, dizendo que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da influência espanhola. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o.
Olho de novo para a janela onde se debruça. Ele diz um gracejo. Toda a gente ri. Preparem-me esse coelho, que tenho fome.O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho.O que este homem trabalhou na nossa obra! Levou o cadáver da amante de uma ponta a outra do país, às costas de gente do povo, entre tochas e cantos fúnebres. Foi um terrível espetáculo que cidades e lugares apreciaram. Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor.
Levanto-me e fico bem defronte do edifício. Vejo a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos dois prédios ao lado.-Senhor,- agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.-Muito bem – responde o rei. Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-me. De novo me ajoelho e vejo os pés dos carrascos de um lado para o outro. Distingo as vozes do povo, a sua ingênua excitação. Escolhem-me um sítio das costas para enterrar o punhal. Estremeço de frio. Foi o punhal que entrou no meu corpo, e verifico que o coração está nas mãos de um dos carrascos. Um moço de rei espera com a bandeja de prata batida estendida sobre a minha cabeça, e onde o coração fumegante é colocado. A multidão grita e aplaude, e só o rosto de D. Pedro está triste, embora, ao mesmo tempo se possa ver nele uma luz muito interior de triunfo. Percebe como tudo está ligado, como é necessário que todas as coisas se completem.
Ah, não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto que sou um assassino e o meu país é católico. Matei por amor do amor – e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante também são criaturas infernais. Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.
O moço sobe a escada com a bandeja onde meu coração é um molusco quente e sangrento. Vê-se D. Pedro voltar-se, a bandeja aparecer perto do parapeito da janela. O rei sorri delicadamente para o meu coração e levanta-o na mão direita. Mostra-o ao povo, e o meu sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo. Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade estar à frente de um povo assim. Felizmente o nosso rei encontra-se à altura de seu cargo, entende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra. Somos também um povo cheio de fé, temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade. Somos todos loucos.
Tombei com a face direita sobre a calçada e, movendo os olhos, posso aperceber-me de um pedaço muito azul do céu, acima dos telhados. Vejo uma pomba passar em frente da janela manuelina. O claxon de um carro expande-se liricamente no ar. Estamos nos começos de junho. A terra está cheia de seiva. A terra é eterna. À minha volta dizem obscenidades. Alguém sugere que me cortem o pênis. Um moço vai perguntar ao rei se podem fazer, mas este recusa.
-Só o coração, diz. E levanta de novo o meu coração, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, e encomenda-me a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a este meu povo bárbaro e puro as boas palavras violentas. Um filete de sangue escorre do queixo de D. Pedro e vejo os seus maxilares movendo-se ligeiramente. O rei come o meu coração. O barbeiro saiu do estabelecimento e está a meio da praça com a sua bata branca, o seu bigode louro, vendo D. Pedro a comer o meu coração cheio de inteligência do amor e do sentimento da eternidade.O marquês Sá da Bandeira é que ignora tudo, verde e colonialista no alto de seu plinto de granito. As pombas voam à volta, pousam-lhe na cabeça e nos ombros, e cagam-lhe em cima. D. Pedro retira-se, depois de dizer à multidão algumas palavras sobre crime e justiça. Aclama-o o povo mais uma vez e dispersa. Os soldados também partem, e eu fico só para enfrentar a noite que se aproxima.
Esta noite foi feita para nós, para o rei e para mim. Meditaremos. Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do amor à eternidade. O rei estará insone no seu quarto, sabendo que amará para sempre a minha vítima.Talvez que a sua inspiração não termine aí, e ele se torne cada vez mais cruel e mais inspirado. O seu corpo ir-se-á reduzindo à força do fogo interior, e a sua paixão será sempre mais vasta e pura. E eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração. D. Inês tomou conta de nossas almas. Ela abandona a carne e torna-se uma fonte, uma labareda. Entra devagar nos poemas e nas cidades. Nada é tão incorruptível como a sua morte. No crisol do Inferno, manter-nos-emos todos três perenemente límpidos. O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração para geração. E que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado para aqui

(Herberto Helder. Os passos em volta. Lisboa: Assírio Alvim.p 121-125.)

Comentário do conto Teorema, de Herberto Helder


 Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, ilha da Madeira, no seio de uma família de origem judaica. Poeta, ensaísta e contista, Herberto Helder é autor de vários livros de poesia e de um único livro de contos – Os passos em volta - do qual colhemos “Teorema”. Ele é considerado um dos melhores poetas surgidos no século XX, em Portugal. Além disto, seu livro de contos já teve várias edições esgotadas e reeditadas.

O título da narrativa aponta a ambigüidade que percorre o texto, ensejando leituras diferentes a partir dos dois sentidos advindos dos significados de teorema. Na sua acepção mais evidente, como a veicularam as ciências matemáticas, teorema é uma proposição demonstrável a partir de axiomas, ou seja, uma proposição que, para ser admitida, precisa de demonstração que comprove a evidência da tese. Mas, existe uma forma de perturbar a lógica desse procedimento, por redução do teorema ao “absurdo”, inversão de caminho que, no entanto, chegará à mesma verdade. É este significado o que se coloca para a demonstração da tese que o autor levanta (via absurdo), ou seja: demonstrar, através da inversão da “verdade histórica” – ou daquilo que se tem como tal –, que o crime praticado por razões de Estado (ou políticas) tem uma outra verdade desvelável pelas vias do absurdo.

Tal inversão da verdade começa logo no primeiro parágrafo com as frases proferidas por Pero Coelho referindo-se à Inês de Castro: “Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o”. Ditas pelo assassino de Inês de Castro, tais palavras promovem a inversão da verdade histórica, desmentindo tudo o que foi asseverado pela história oficial e, por extensão, desconstruindo a imagem de Inês e a imagem de Pedro oferecidas por Camões e demais poetas que mitificaram Inês e sua trágica história de amor.

O que sempre fora considerado um crime hediondo, cantado em prosa e em versos, em Teorema passa a ser visto como um ato de suprema relevância em razão da nobreza de seu objetivo: matar Inês, para “salvar o amor do rei”. O que é espantoso, na medida em que assinala uma inusitada conivência entre o rei e o assassino de sua amante. Porém, a cumplicidade entre o rei e Pedro Coelho é confirmada por algumas afirmações do assassino: “Gosto deste rei louco, inocente e brutal”; “O rei olha para mim com simpatia”. Ora, são inexplicáveis os motivos que justificam o sentimento de Pedro Coelho pelo homem que mandou assassiná-lo, como é absurdo esse olhar de simpatia do rei para a sua vítima, diante da brutalidade da punição que o mesmo aplicará ao assassino de Inês.

Tudo isto, no entanto, pode ser admissível se entendermos que a realidade construída pelo autor é alicerçada nos princípios da heterodoxia. Portanto, é a lógica do absurdo um dos caminhos que explicaria o título Teorema, dado ao conto e, a partir daí, viabilizar a compreensão da mensagem que o autor pretende passar ao leitor.

O segundo significado de Teorema seria “o que se pode contemplar”, ou seja: festa e espetáculo, também confirmado, à medida em que o conto é estruturado como espetáculo que se oferece à contemplação das personagens e do leitor. A disposição do cenário na praceta, sob a janela manuelina (“El-rei D. Pedro, o Cruel, está na janela sobre a praceta”) para onde se dirigem o “barbeiro de bigode louro” e a multidão curiosa. É notória a teatralidade que reveste a cena.

Nessa perspectiva, os significados de Teorema se somam ao da revisão que o conto se propõe realizar de um fato que se tornou um mito e, por extensão, do passado histórico português. Tal revisão exige argumentos que seja de tal forma persuasivos, que possam perceber a verdade que é velada pelas aparências e pelo discurso oficial.

Teorema celebra o homem pecador, degradado, decaído, condenado ao inferno pelas leis do catolicismo. A narrativa organiza-se como uma missa negra, parodiando, passo a passo, o ritual da missa católica e algumas passagens da paixão de Cristo.

Vale salientar que a missa negra, praticada por seitas demoníacas, realiza um ritual no qual pessoas são sacrificadas, havendo, portanto, morte com derramamento de sangue. No conto, é o demônio quem detém o poder e comanda as ações das personagens que ocupam o espaço demoníaco: D. Pedro, Pedro Coelho e Inês de Castro, parodiando as três pessoas da “Santíssima Trindade”: O Pai (D. Pedro, por ser o detentor do poder temporal), o Filho (Pedro Coelho: o que é imolado pelo Pai) e o Espírito Santo (Inês: ela é uma pomba, é labareda, chama e fonte).

No final, D. Pedro é o único componente da tríade demoníaca que está vivo, interiorizando em sua pessoa as três personagens que constituem o “mistério” da demoníaca trindade, como sugere o narrador: “ele comeu o coração de Pedro Coelho (o filho) e é dominado pelo “fogo” de Inês (Espírito Santo). Ele também está condenado a arder nas chamas do Inferno: “o seu corpo ir-se-á reduzindo à força do fogo interior [...]. Eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu meu coração. D. Inês tomou conta das nossas almas. No crisol do Inferno manter-nos-emos todos três perenemente límpidos”.

O conto desconstrói a imagem de Inês configurada por Camões, Garcia de Resende, António Ferreira, dentre outros que a mitificaram, o mesmo acontecendo com D. Pedro. Inês, mesmo não participando diretamente da trama narrativa, mesmo ausente, ela é o centro do drama vivido pelos protagonistas. Ela invade as cidades, penetra a literatura e entra na história. A morte eternizou-a.

Vale lembrar que o assassinato de Inês, sempre usado para alimentar a ideologia dominante, é focalizado no conto sob outro ponto de vista: a do assassino que relata a sua morte, perpassando toda a narrativa com um tom de crítica às tradições milenares que ameaçavam se perpetuar e aos valores milenares do catolicismo. A verdade histórica é questionada, os supostos heróis tombam do pedestal, passando tudo e todos pelo crivo de uma leitura desmitificadora que o autor de Teorema faz do passado.