10 de abril de 2011

Comentário do conto "A Palavra Mágica"


A “Palavra Mágica”, um conto que mostra a face divertida do seu autor, empenhado em nos dá uma visão cômica de uma aldeia portuguesa, através do quase analfabetismo da sua população, que vive segundo os seus preconceitos morais. A linguagem é fluida, direta, quase mimetizando a simplicidade da fala dos provincianos, para que melhor se perceba as peculiaridades do seu mundo tão “sui generis”. 
Com efeito, Virgílio Ferreira criou uma deliciosa história em torno de uma questão lingüística, mostrando como uma palavra mal entendida pode gerar equívocos e desavenças de grandes proporções.
Tudo começou quando Silvestre, um pacato viúvo sem filhos, que vive numa vila onde todos usufruem da sua boa vontade, envolve-se numa discussão com o Ramos da loja, que o trata de “inócuo”, palavra que ouvira num folhetim. O rumor faz com que a palavra maldita se espalhe pela freguesia, conotada de sentidos pejorativos e pronunciada de maneiras diversas. Começa por significar vadio, passando a bêbedo na boca da mulher do Paulino. Mais tarde, quando um vigarista vendedor de drogas entra na aldeia, a palavra ganha o sentido de trampolineiro ou ladrão dos finos e, quando o Rainha mata o marido da amante, sendo catalogado com o mesmo termo, “inoque” já significa devasso e assassino.
Como uma bola de neve, a palavra transforma-se num insulto terrível, chegando ao Perdigão dos Cabritos e, meses depois, a um cabeleireiro que chegou à vila, adquirindo então novos significados como parricida, incendiário, pederasta ou escroque.
Quando começaram a ser julgadas as primeiras queixas no tribunal da vila contra a injúria de “noque”, “inóque” ou “inócuo”, o juiz, apercebendo-se do verdadeiro significado da palavra, fica incrédulo perante a confusão gerada, pois inócuo significa “que não faz dano, inofensivo”. Indiferente aos protestos do advogado dos queixosos que achava que o Juiz deveria considerar a intenção de insultar por parte dos acusados, o Juiz arquivou os processos. E foi assim que Bernardino, um dos primeiros queixosos, perdeu a causa. Todavia, é tão forte o poder de uma palavra depois de assimilado o seu significado, mesmo equivocado que, mesmo sendo esclarecido o seu verdadeiro significado, a comunidade deu continuidade ao uso da palavra mágica que servia para todo tipo de impropério, injúria e insultos. Até o advogado e o filho do Gomes, cientes do significado da palavra, inclusive pronunciado-a de forma correta, jogaram para o lado o dicionário e passaram ao uso da mesma com o falso sentido injurioso, de acordo com seus ímpetos de ódio, desprezo por alguém.
No fundo, “A Palavra Mágica” é um retrato divertido do Portugal genuíno, onde os princípios têm mais valor do que as convenções e onde a honra, um dos raros haveres da população das vilas e aldeias, é a primeira a ser defendida. E nem a decisão do juiz, considerado pelo povo uma pessoa culta, foi capaz de mudar a mentalidade de quem é teimoso, apesar de pouco ou nada saber. Por mais que se tente, naquela aldeia, aquele vocábulo vai ser, para sempre, um vitupério na ponta da língua, pronto a ser cuspido com ódio e rancor.
Sabe-se que todo processo comunicativo é um ato em que devem fazer parte todos os elementos funcionando adequadamente. Qualquer falha no sistema acarretará em problemas na captação da mensagem. Assim, deve-se atentar para que o emissor e o receptor tenham em comum o código, isto é, a linguagem seja conhecida pelos dois, caso contrário poderá ocorrer que uma simples palavra de significação positivo, como a palavra Inócuo (inofensivo), por ser desconhecida por um dos interlocutores por muitas pessoas do lugarejo, tenha sido a causa de toda confusão na aldeia e na vila.
Os contos de Guimarães Rosa, “Famigerado” e Hipotrélico, também tematizam a questão da linguagem. O primeiro está no arquivo do blog, o segundo é um dos contos da coletânea Tutaméia. Nesse conto, o autor faz uso de um neologismo – hipotrélico”- causador de polêmicas quanto ao seu significado. A guisa de exemplificação, segue-se um trecho do conto em que o autor alude a essa questão:
“(...) Já outro, contudo, respeitável, é o caso - enfim - de 'hipotrélico', motivo e base desta fábrica diversa, e que vem do bom português. O bom português, homem de bem e muitíssimo inteligente, mas que, quando ou quando, neologizava, segundo suas necessidades íntimas. Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente:
-E ele é muito hiputrélico... Ao que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu o veto: -Olhe, meu amigo, essa palavra não existe. Parou o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo:
-Como? ... Ora ... Pois se eu a estou a dizer?
-É. Mas não existe. Aí, o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom já feliz de descoberta, e apontando para o outro, peremptório:
-O senhor também é hiputrélico... E ficou havendo". (Tutameia - Terceiras estórias)

Segundo o autor, "hipotrélico" significa "indivíduo pedante", "falto de respeito para com a opinião alheia."

 

4 de março de 2011

"Lídia", conto de Maria Teresa Horta.

Primeiro foi uma espécie de impressão nos ombros e no pescoço. Uma ardência. Uma espécie de queimadura à flor da pele. Tentou ver-se no espelho do quarto: nua da cintura para cima, torcendo-se um pouco. Pareceu-lhe descobrir uma pequeníssima mancha vermelha em cada omoplata. Foi buscar o espelho redondo, cabo de prata trabalhada toda à volta, mas não conseguiu distinguir mais de perto.
Levou os dedos de novo às costas e tacteou um pouco. Mexeu de cá para lá a ver se descobria alguma grossura, mas não sentiu nada; absolutamente nada. Vestiu a blusa mais fina a abotoar à frente, praticamente translúcida e durante o resto do dia quase se esqueceu fresca e leve daquela impressão, daquela comichão.
Ao fim da tarde, quando já fazia escuro, o ardor voltou: docemente, num incômodo sem causa. Lídia nem sabia afinal o que sentia. E quando o marido chegou para jantar encontrou a casa às escuras e fria. Como que vazia na escuridão opaca dos quartos. Gritou: “Lídia!”, mas ela não lhe respondeu logo, entorpecida, entontecida, como se tivesse bebido um pouco.
Realmente Lídia sentia muita sede.
A mãe vomitara sangue quando ela era muito pequena. Vira-a levar os dedos à boca e eles saírem sujos de sangue enquanto tossia sem conseguir parar. Num desespero sem nome. Agarrara-lhe um dos braços abaixo do cotovelo e não o largara mais até a hemoptise acabar, pouco a pouco, de forma surda e equívoca.
O avô que era médico deitara a mãe num cadeirão baixo e largo na casa de jantar, dera-lhe um comprimido, um copo de água gelada. Pusera-lhe um saco de água quente aos pés e sentara-se numa cadeira em frente, hirto, à espera.
Estava muito branco e silencioso, como que a escutar aquele pequeno silvo que saia da boca da mãe, aquele borbulhar contínuo no peito da mãe enquanto tossia e levava um guardanapo de linho à boca e ele voltava sempre manchado de encarnado vivo. A mãe inclinava a cabeça para trás no espaldar forrado do cadeirão e de olhos fechados tentava dominar aquele pequeno repuxo de sangue que lhe subia do corpo a aflorar os lábios cerrados e lívidos; a perderem os contornos.
Lídia lembrou-se da mãe e teve medo, inexplicavelmente, ao lembrar aquelas marcas que julgara perceber nas costas quando olhara no espelho. Simétricas. Totalmente simétricas: em cada omoplata numa pequeníssima dor que começava agora a descer pelos braços, à flor da pele. Um formigueiro, era isso. Como um formigueiro na parte exterior dos braços que prendeu ao pescoço do marido inclinado sobre a cama ainda de casaco vestido tal como chegara da rua.
“Teus braços tão quentes!” – admirou-se ele, beijando-a na boca. Mas ela recuou porque lhe era insuportável o contacto do seu corpo. Nauseada. Percebeu então que asfixiava; as janelas fechadas da casa pareceram-lhe por momentos terem grades.

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Comentário do conto Lídia, de Maria Teresa Horta.


O extraordinário conto de Maria Teresa Horta é conduzido por uma narradora heterodiegética, omnisciente, que, com ostensiva liberdade, devassa a interioridade da personagem principal – Lídia – desvendando os seus pensamentos e sentimentos, sem nenhum tipo de controle. Tal estatuto narrativo permite que tenha domínio pleno dos fatos narrados.

Uma leitura do texto que flutuasse apenas em volta do seu sentido manifesto, seria, decerto, tão limitada quanto é a compreensão do marido de Lídia para o fenômeno da radical mudança de comportamento dela, interpretada como loucura. Nestes termos, o final do conto seria visto como uma tragédia, desencadeada pelo suicídio da personagem, que, convicta de que se tornara uma ave, abre os braços (asas) e pula da janela para a morte.

Só uma leitura atenta para o sentido latente do texto dá conta da riqueza da mensagem por ele veiculada. Assim, dentre as várias formas de compreender o conto, optamos pela leitura do mesmo enquanto alegoria da libertação da mulher. Assim, a aparente loucura de Lídia nada mais é que um signo da “metamorfose interior” pela qual passa a personagem. A aparente loucura de Lídia pode ser vista como a metáfora da mudança gradativa, realizada por meio de um processo de transformação interior da personagem, que a conduz para uma tomada de consciência acerca da sua condição existencial, do seu estar na vida presa a convenções altamente limitadoras e repressoras, originadas de costumes milenares que subalternizam e tratam a mulher de forma desigual e injusta no contexto social e familiar.

A parte final do conto, com a imagem de Lídia alçando o Vôo, representa metaforicamente o ponto culminante desse processo. O salto para o alto representa literariamente um salto de uma situação negativa e repressora para uma outra oposta e libertadora, feita por opção do sujeito. Vale observar que a mudança de Lídia, sendo interior, não se processa de forma brusca e imediata. Ela ocorre lenta e gradativamente.

Lídia não percebe que lhe nascem asas, apenas vê uma mancha vermelha, porque as asas eram simbólicas, significando a mudança interior, logo não poderiam ser percebida através do espelho. Este não poderia refletir o que se passa no interior da personagem: as mudanças de ordem psicológicas, a reviravolta dos sentimentos, a subversão dos valores, as mudanças em sua visão de mundo, as rupturas com os padrões de comportamento vigentes.

O conto, de orientação feminista, se afirma como uma alegoria do despertar da mulher para a sua condição na sociedade, para o papel que lhe é destinado no âmbito das limitadas possibilidades possíveis.

O texto sugere, através de uma alegoria das asas, a libertação da mulher que vive de acordo com os padrões convencionais da sociedade, à medida que ela rejeita o lugar que lhe é marcado no grupo social e parte para a busca de “um lugar não-marcado”, o qual não seria, necessariamente, o de esposa e dona de casa, limitado ao espaço do lar e da família. Como mulher da classe média, casada, ela ocupa o lugar que lhe é marcado, onde deve permanecer e cumprir os seus deveres. É isto o que se espera dela, esse é o comportamento que deve ter, dentro dos princípios da normalidade estabelecidos pelo grupo social.

O processo de transformação de Lídia avança por etapas, é doloroso e alvo da incompreensão dos que a rodeiam. Todavia, uma vez iniciado, não tem caminho de volta... prossegue até à libertação ser conseguida.

O final do conto é de uma tocante poeticidade, com a imagem do vôo da personagem rumo a libertação e ao recomeço de uma vida até então vivida em função do que dela esperava a família e o grupo social, tal como viveram sua avó, sua mãe ...

7 de fevereiro de 2011

O Mistério da Árvore, de Raul Brandão.

Esgalhada e seca, os seus frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém se lembrava que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fugia da árvore estarrecida e hirta que havia séculos servia de forca.

Em frente ficava o Palácio real, construído num bloco de pedra escura, e só o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica, se pusera a amá-la, a árvore triste que havia séculos servia de forca. Que doença estranha, lenta mas tenaz, matava o Rei?... Só amava os crepúsculos, as agonias da luz, o passado, e a multidão silenciosa vinha vê-lo, ao fim da tarde, de cabeça encostada aos vidros das janelas, fixo o olhar nas águas verdes e limosas e no espectro da árvore levantada diante do Palácio. Tudo que era vivo fugira de ao pé dele, porque o Rei mandava punir a mocidade e o amor, e dez léguas à roda o país tinha sido assolado pelos seus guerreiros brutais. Mandara queimar tudo, devastar tudo no seu reino.

Nem uma folha nem uma ave – nem um sinal de vida. De pé unicamente a árvore, desde séculos estarrecida e hirta, a árvore maldita que no seu reino servia de forca. No silêncio tumular do Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredores desertos, lentos ou precipitados, conforme o pensamento tenaz que o devorava, gastando pouco a pouco as lages duras do chão. Não podia amar. Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a carne láctea das mulheres: tudo lhe era vedado. Horas atrás de horas se ouviam no Palácio os passos do Rei doente, toda a noite, toda a noite a rondar...

Sucedeu que veio a Primavera e todas as árvores, para lá do território assolado, estremeceram e se cobriram de flor. Borboletas nascidas do seu hálito noivavam no azul, e dois mendigos amorosos, de países lendários, entraram e perderam-se, naquela terra praguenta, ela envolta na poalha dos cabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao seu olhar. Eram pobres. E assim, apenas vestidos, vieram enlaçados com a Primavera, cobrindo a terra erma, que calcavam, de vida e de amor. Eram pobres e felizes. Flores esvoaçavam pela sua nudez, e as macieiras dos quintais deitavam galhos fora dos muros, de propósito para os ver passar.

Azul, sonho, entontecimento, toda a atmosfera estremecia. Só o Rei no Palácio deserto vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvores enojavam-no. Queria todo o país negro, deserto e escalvado; e o amor que trespassava a terra e os bichos, a própria morte que tudo transforma, lhe pareciam abominação e afronta. Odiava a vida. Mas deitava-se e sentia palpitar as fragas: os montes eram seios duros, as árvores cabelos ao vento. Para não ver, encerrava-se no Palácio construído dum bloco de pedra, e sozinho ficava então de olhos postos na árvore. Contemplava-a. Como o Rei, ela era seca e hirta – fora-o sempre – e os seus frutos cadáveres ou corvos. À passagem de Abril e dos mendigos, tudo à volta se transformava: só ela quedava inerte diante da vida e do amor, a árvore trágica que havia séculos servia de forca.

Um dia o Rei soube que dois seres felizes haviam transposto as fronteiras e mandou-os logo prender. Nas últimas noites sentira-os nos espinheiros túmidos, nos sapos dos caminhos que pareciam extáticos, nas coisas que estremeciam, na noite magnética cheia de murmúrios, no vento que atirava para o castelo ramos de árvores luminosos. Punha -se de ouvido à escuta, e a terra, a noite e o mar sufocados iam talvez falar, iam enfim falar!... Quando os soldados os trouxeram ao Palácio, com eles entro um bafo novo: cheiravam a sol e a lama dos caminhos e pegava-se-lhes húmus aos pés descalços. A vida rompeu por aquele túmulo dentro pois que iam morrer, dir-se-ia que a morte, em lugar da foice simbólica, pela primeira vez trazia nas mãos um ramo de árvore

Dois mendigos e amavam-se! Nem sequer eram extraordinariamente belos, mas deles irradiava uma força imensa – daquela moça sardenta, com resquícios de palha pegados aos cabelos, daquele homem cuja carne aparecia entre os farrapos. Não davam pelo Rei, não davam pela Morte. Amavam-se. Atreviam-se num país que ele mandara assolar para que nunca mais diante de seus olhos pudesse aparecer a imagem da vida e do amor! Olhou-os o Rei durante alguns minutos em silêncio, e depois fez um gesto aos carrascos, que logo se apoderaram deles e os levaram. Sorriam-se os mendigos cheios de terra e ervas, e, enlevados, olharam um para o outro, ignorando o que se passava em volta – olhos nos olhos, mãos nas mãos... Noite negra, o Rei subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens, restos de mantos esfarrapados arrastavam-se pelo céu.

A árvore onde os dois haviam sido enforcados, mal se distinguia no escuro; mas de lá vinha um frémito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos decerto. Em vão reduzira tudo a cinzas – por baixo das cinzas latejava a vida. Toda a terra parecia fermentar. Ouvia murmúrios. Se as árvores falassem! se as árvores e as coisas dissessem tudo que sabem! A água chalrava, perdia-se em fios pela terra. Mas então ele não mandara secar as fontes? Vozes, mais vozes ainda no escuro, a voz baixinha e humilde das árvores cheias de folha, que o vento chegava umas para as outras... Mas então ele não mandara despir para sempre as árvores? Pior... Mais fundo ainda, no negrume opaco da noite, o sussurro da vida – como se ele não tivesse mandado espezinhar a vida!... Encostado à muralha, passou a noite absorto. As nuvens galopavam, o grasnido dos corvos afligia-o... Porque não iria ele também ser macieira, mendigos, húmus? transformar a dor em felicidade? beber o sol arrastado na aluvião da vida? Oh como odiava a mocidade, a ternura, os lábios moços que se beijam!...Só a árvore esgalhada e seca o prendia ainda, a árvore sinistra que no seu reino servia de forca. Ficou até de manhã de olhos postos naquele fantasma triste e enorme, negro como as ideias negras que tecia, seco como a sua própria alma – a árvore desmedida que no seu reino servia de forca... Começaram os cerros a tingir-se de violeta, as árvores a azular, e a forca, em que se absorvia, a destacar-se de entre a névoa, a árvore esgalhada e imensa que havia séculos perdera a seiva e a vida.

Súbito ficou imóvel de espanto. Aquecida com o amor de dois mendigos, tinha o galho em que pendiam enforcados cheiinho de flor. Dura e má como as pragas, juntara no ramo que os cobria toda a flor que a terra assolada não pudera produzir. Era nada, quase nada, algumas flores miudinhas prestes a sumirem-se ao primeiro sopro – era dor estreme e sonho estreme. Nos seus braços haviam sido enforcados muitos desgraçados e as suas raízes mortas pelas lágrimas de aflição. Tolhida com os gritos, não bebia água nem sugava húmus. Vira passar homens, primaveras e reinados, sem se comover, mão arrepelada a amaldiçoar a terra e o castelo. Assistira a transformações de solo, a tempestades, a cataclismos e a guerras, sempre petrificada como a morte – e naquela noite, trespassada pelo amor dos dois mendigos, desentranhara-se em ternura, como se nela se concentrasse toda a paixão, a Primavera e o noivado da terra – a árvore maldita que desde séculos servia de forca.


(in A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore, Lisboa, 1926.)


COMENTÁRIO

O conto O Mistério da Árvore confronta dois universos absolutamente opostos e inconciliáveis: o universo luminoso dos dois mendigos que representam a alegria, a felicidade, a simplicidade, a pureza, a generosidade e a afetividade. O casal resplandece no cenário bucólico que os rodeia, configura-se como um poema à vida! Opondo-se a este universo, lá está o do infeliz, solitário e mórbido Rei, caracterizado pela atmosfera sombria, sufocante e deprimente que o rodeia. O palácio tem uma arquitetura pesada e despojada que lembra um túmulo, o cenário em que o rei transita é grotesco, degradante e degradado pelos seus desmandos, despotismo, tirania e perversidade.

Ao contrário do casal de mendigos, o Rei é a metáfora do vazio interior, da infelicidade, da destruição, do desamor e, mais que tudo, da morte. A única árvore do reino é desvitalizada, seca, esgalhada, trágica: só serve para enforcar os sentenciados pelo monarca. A crueldade, a covardia e a incapacidade do Rei de amar, de procurar para si mesmo o amor e a felicidade que inveja no casal de mendigos, decide condená-lo à morte por enforcamento: ”Noite negra, o Rei subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens, restos de mantos esfarrapados arrastavam-se pelo céu. A árvore onde os dois haviam sido enforcados, mal se distinguia no escuro; mas de lá vinha um frémito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos decerto. Em vão reduzira tudo a cinzas...”

Raul Brandão reúne, neste conto, o claro-escuro e a morbidez decadentista, com pinceladas de poeticidade romântica que irrompe da relação de amor vivida pelo casal de mendigos, por sua morte trágica e pela evocação da herança medieval do “mito do amor paixão” que trata da perpetuação do amor além da morte, metaforizada na revivescência da árvore onde foram enforcados os amantes.