Era uma vez um menino chamado Pedro que viu, um dia, à meia-noite, uma estrela… Era a estrela mais gira do céu. Como é que ninguém a tinha roubado? Ele próprio poderia facilmente apanhá-la, era só deitar-lhe a mão. Então, quando achou que os pais estavam a dormir, abriu a janela e saltou para a rua, a janela era baixa. Assim que se viu na rua, desatou a correr até à igreja.
A estrela ficava mesmo por cima da torre. Ele entrou na igreja, a porta estava aberta, e começou a subir as escadas… ali cheirava muito mal. Subiu até ao campanário e tinha agora de subir uma escadinha estreita e depois outra de ferro, ao ar livre. Reparou que não chegava ainda à estrela com a mão, portanto teve de subir mais um pouco dobrando e desdobrando as pernas como uma rã. No cimo da torre havia uma bola de pedra com um ferro enterrado e no cimo do ferro estava um galo com os quatro pontos cardeais. Ele empoleirou-se nos ferros cruzados e começou a despregar a estrela a pouco e pouco. A estrela soltou-se, por fim, e ele prendeu-a no cordel das calças. Agora tinha de descer com cuidado, pois se a estrela caísse lá em baixo podia partir-se…
Ele desceu devagar, correu para casa e trepou à janela. Quando se foi deitar, ainda esteve algum tempo com a estrela na mão, mas não muito, porque estava cheio de sono. Então, guardou a estrela numa caixa e adormeceu. No dia seguinte, acordou tarde e a mãe estranhou. A certa altura, Pedro começou aos berros e a mãe veio logo, muito aflita, ver o que ele tinha. Ele estava fora de si e gritava:
- Roubaram-ma! Roubaram-ma!
A mãe pensou que eram restos de sono, não ligou e disse: - Vê é se tiras o cu do ninho, que já são horas. Levantou-se da cama e foi para a cozinha, mas não comeu nada, pois estava triste: pois a sua estrela já não era a mesma, era como uma estrela de lata. Chegou a noite e Pedro foi-se deitar, mas não tinha sono e, de repente, viu vir uma luz muito forte de baixo da cama que se estendia pelo soalho, assustou-se, mas, antes de se assustar muito e berrar, lembrou-se que era a estrela que brilhava tanto como quando a fora apanhar.
No dia seguinte, à noite, um velho, bastante velho, começou a berrar coisas, mas ninguém o percebia, até que o Cigarra, um tipo que tocava viola lhe encostou o ouvido à boca, percebeu-o e começou a gritar: - Roubaram a Estrela! As pessoas ficaram a olhar umas para as outras sem nada entender e Pedro foi-se raspando. Gerou-se então uma discussão: uns, como o Sr. António Governo, uma pessoa muito importante lá na aldeia, consideravam que uma estrela a mais ou a menos no céu pouca diferença fazia, outros, como o velho e o Cigarra, achavam as estrelas importantes, porque enfeitam o céu.
Ao jantar, as conversas iam dar sempre ao mesmo: o roubo da estrela. Pedro fingia que não ouvia, muito encavacado, comendo depressa para ir para a cama. Nem tocava na caixa com medo que os pais descobrissem. E o roubo foi sendo esquecido. Só então ele abriu a caixa e espreitou a estrela.
Certa noite, a mãe lembrou-se de ir verificar se o lume estava bem acondicionado para não pegar fogo nem se apagar e, ao passar pelo quarto do filho, viu um feixe de luz por debaixo da porta, abriu a porta devagar, espreitou e apanhou o Pedro com a estrela na mão. A mãe furiosa foi-se a le e tirou-lhe a estrela da mão, queimou-se e atirou um grito tão alto que o pai acordou.
O pai correu para o quarto do filho e encontrou os dois a chorar. Pedro chorava, mas não sabia porquê. A mãe chorava, porque ficara com a mão toda queimada. O pai mal falou, mas no outro dia toda a freguesia se pronunciou. Ninguém acreditava que aquilo era a estrela e até pediram uma opinião ao latoeiro. Este confirmou que não era uma estrela de certeza. Então o Governo disse, como um homem sábio que era, que só à meia-noite é que a estrela brilhava.
À meia-noite toda a aldeia se reuniu no adro, o Governo chamou o seu filho para pôr a estrela no seu lugar, mas este ao agarrá-la queimou-se, largando-a logo. O pai do Pedro pediu silêncio e disse que o seu filho tinha tirado a estrela, devendo, por isso, ser ele a devolvê-la ao céu. Pedro lá foi. Subiu à torre, ao galo e aos pontos cardeais, tirou a estrela do cinto e colocou-a no seu lugar. Toda a gente soltou um “ah!” e nem reparou que a estrela começou a brilhar muito menos. E ou se assustou com a força do “ah!” ou porque não fincou bem os pés no varão, Pedro escorregou até à bola de pedra, desequilibrou-se e caiu da torre, estampando-se nas pedras do adro. Todos choraram a sua morte. A estrela ainda lá está e toda a gente a conhece.
COMENTÁRIO
O conto A Estrela está bem caracterizado como uma narrativa pertencente ao gênero maravilhoso, ou seja: ela se enquadra num tipo de ficção que explora o sobrenatural, orientado por um tipo de lógica que se coloca à margem da lógica do senso comum e prioriza outros códigos. A expressão fraseológica que inicia a narrativa – “Era uma vez”- estabelece um pacto narrativo entre o narrador e o seu leitor virtual, que passa a admitir como verdadeiros fatos inexplicáveis ou carregados de insondáveis mistérios, subordinados às leis do mundo da fantasia e do sonho, onde nada é impossível e tudo é encarado como natural. Segundo a lógica interna do Maravilhoso, o leitor aceita que a criança poderia, de fato, roubar a estrela do céu, sem se mostrar espantado ou descrente de sua verdade, tal como as crianças acreditam que animais falam, que tapetes voam nas historinhas que lêem.
O narrador heterodiegético, assumindo a omnisciência e a focalização interna, especialmente em relação ao menino Pedro, vai desvelando os seus sentimentos e as suas emoções, explorando o seu imaginário infantil e a sua visão de mundo. Fazendo uso de um estilo comedido que sugere muito mais do que esclarece, o narrador constrói a narrativa visando dar mais realismo aos fatos narrados que envolvem a criança, bem como mimetizar o dramatismo presente em suas ações, em suas motivações, em seus impulsos, anseios e temores. A imprecisão temporal, as vagas e rarefeitas informações do narrador, a sua contensão concedem ao conto uma fisionomia misteriosa, uma atmosfera mágica e um desenlace surpreendente. Além do elemento Maravilhoso, o conto também se abre a uma leitura de cunho alegorizante. Ao relatar a história de Pedro, o seu empenho em roubar a estrela mais brilhante e mais bela do céu, mesmo sem ter consciência das razões que explicariam o seu desejo de tê-la somente para si, mesmo ignorando o que faria com ela, o conto reveste uma dimensão metafísica indiciadora de um processo iniciático, de índole alegórica que remete a uma busca de crescimento interior, ou da demanda de um estado de plenitude do ser.Tal como acontece nos rituais de iniciação, Pedro tem que vencer vários obstáculos para poder chegar até a Estrela, submetendo-se a vários tipos de provas, todas difíceis e arriscadas.
Assim, ele é forçado a sair de casa, à meia noite, sozinho, às escondidas, para poder chegar à igreja. Esta, erigida no alto da montanha, para ser alcançada, exige que ele suba a íngreme encosta que leva ao cume. Lá chegando, tem que superar várias dificuldades, como a passagem na torre, o domínio o seu temor da escuridão e a sua hesitação ante o desconhecido, além de ter que superar os odores estranhos encontrados na subida à torre. Vencidas todos os exaustivos obstáculos da difícil escalada da torre, ele tem que ir até ao cimo do campanário, para subir no alto da rosa dos ventos, onde se encontra o galo e a esfera granítica que representa o universo.
Somente ali pode tomar posse da estrela que o fascina. A irrupção do elemento trágico do conto radica no inesperado destino de Pedro, em sua morte ao retornar ao alto do campanário para devolver a estrela, abrindo mão do seu sonho, sob a absurda e mesquinha acusação de roubo feita pelos mesquinhos habitantes da cidade, ao darem por falta da estrela que nunca haviam notado e que nada significava para eles, tanto que rapidamente a esqueceram quando ela foi reposta no lugar.