27 de julho de 2011

José Gomes Ferreira : A Reportagem do Medo



Quero lá saber de Lisboa de pedra histórica, com ortigas nos pátios, nespereiras nos balcões e palácios de bafio como museus de silêncio podre.
Nas cidades – e nos rios – interessa-me menos o leito pedregoso do que a corrente de pessoas vivas a rolarem Poe essas calçadas de manhã até à noite, cada qual pegada à sua sombra: esta a chorar porque lhe apareceu morto o canário na gaiola; aquele com olhos de letra a vencer amanhã; outra com o filho moribundo embrulhado no xaile roto; outra, ainda desventurosa porque lhe fugiu uma malha da meia, e todos com a morte marcada para depois de amanhã.
Descobrir as tragédias e as farsas dessa multidão diária que cobre de carne humana e de tumulto os rossios, as janelas, as igrejas, os elétricos, os cafés e as tabernas, eis uma das mais deleitosas ocupações do meu destino de espectador das ruas, espectador sui generis aliás, pois não me limito a assistir à vida do camarote do meu segundo andar, mas a saltar, de vez em quando, a pés juntos, para o palco e a representar também algumas “rábulas”.
Rábulas, por sinal, nem sempre felizes, como a que o Fado me distribuiu no último dramazinho colectivo levado inconscientemente à cena por todos nós (título: A parada dos lívidos ou Ó medricas, compra um cão) e em que interpretei, e continuo a interpretar com heroísmo p papel de 1º Pálido.
Por infortúnio, só muito tarde, talvez meses depois da primeira representação, tomei consciência da linda figura que andava a fazer por essas travessas e avenidas.
Ao princípio, confesso, o papel não me desagradou.
Nada de grave, aparentemente. Prudência, apenas. Um evitar mole de sarilhos. A aceitação quotidiana de pequenas injustiças à minha roda. (Oh, só as pequeninas injustiças sem importância. Lá as grandes, não. Nisso de grandes injustiças sou simplesmente feroz, acreditem.)
E assim, pouco a pouco, resvalei até este cômodo estado de admitir sem indignação todas as mesquinhas infâmias do dia-a-dia que, em tempos anteriores, segundo garantem os poucos cavaleiros andantes sobreviventes, provocavam, por via de regra, embates, socos e mãos de polícias a apartar.
Hoje não. Ainda esta manhã vi um brutamontes, com olheiras de tanguista e ombros de moço de recados, atirar um encontrão a uma velhota para lhe roubar o lugar no eléctrico, e ninguém soltou pio.
A pobre senhora, meio tonta, alheada do que se passava em redor, escancarou os olhos numa fixidez de assombro diante do burburinho do mundo.
Pois da plataforma apinhada de homens válidos, como eu, não saiu um único protesto.
Alguns empalideceram. Oh, sim, alguns ficaram brancos de cal e cravaram unhas enfurecidas nas palmas das mãos.
Mas o grito não se ouviu.
Bico calado. Ausência completa de dons-quixotes. Todos a pensarem nas vidinhas, nos destinos exíguos ao molde da alma de cada um.
Que lhes importavam o atropelo, a prepotência, o pontapé nas canelas do vizinho, o insulto, a calúnia, o apalpão impotente, o abuso do mais forte, as rasteiras e os pinhões nos velhos?
Alguns – coitados -, os derradeiros quixotes pusilânimes, empalideceram. Outros tornaram-se verdes, a expelir as clássicas labaredas de ira pelos olhos.
Mas todos acabaram por engolir o grito e passar adiante...
Porque os portugueses de hoje, infelizmente, passam sempre adiante.
Vejam, vejam: agora mesmo, no meio da rua, aquela mulher, esfericamente gorda, desatou a espancar o filho de 6 anos e olhos enormes do tamanho de todas as lágrimas dos homens.
Porquê? Ninguém percebeu.
Bateu-lhe, pronto. Talvez para se vingar de qualquer pensamento humilhante. Talvez – quem sabe? – apenas para desenvolver os músculos dos braços.
Bateu-lhe. Pregou-lhe uma coça. Fez a ginástica do desespero. Rasgou-lhe os lábios com unhas maternais. Humilhou-o diante do sol. Esbofeteou-o.
E eu como reagi?
Claro, o meu primeiro instinto foi este: dar um pulo, fincar-lhe as mãos no pescoço e intimá-la a pedir perdão ao filho, ali mesmo, de joelhos.
Mas com grande espanto meu – cheio de comícios por dentro e de impassibilidade por fora – prossegui friamente o meu caminho, a fumar um cigarro abstrato, com a voz de D. Quixote entalada na garganta.
Há dias, o mesmo vexame.
Uma multidão de palermas desnecessários escarnecia dum doido, e eu passei adiante, sem sequer esboçar a raiva de me insurgir.
Como de costume, tornei-me muito pequenino, meti-me dentro do meu coração parvo, e o pobre maluco lá continuou a deixar-se esquartejar pelas feras.
Vocês conhecem-no, com certeza.
É um homem alto e gordo, de cara redonda, cabeleira à poeta, olhos infantis, fraque sebento, que aos domingos aparece por essas encruzilhadas a dirigir, com as mãos e um apito, o trânsito dos carros.
A história da sua vida... até apetece fazer literatura. E, no entanto, pode relatar-se em meia dúzia de palavras irônicas.
Um dia, um automóvel qualquer atropelou-lhe o filho, e ele, muito naturalmente, endoideceu.
De facto, que queriam que ele fizesse senão endoidecer?
Em lugar de sofrer em voz alta, de representar mais uma vez a comédia da dor humana aos soluços sobre o cadáver do filho, numa tentativa inútil de ressurreição, pôs-se a rir de mansinho. E comprou um fraque. E deixou crescer o cabelo. E veio para a rua vestido de polícia sinaleiro voluntário. E, por fim, começou a freqüentar os jardins públicos para tomar conta dos garotelhos, defende-los dos automóveis e dançar, com grande agitação desarticulada, o giroflé-giroflá.
Nos primeiros tempos, as mães, mal o divisavam, advertiam os meninos por precaução:
-Ó José! Ó Raul! Ó António! Venham para o pé da mamã!
Mas agora já lhe entregam os filhos, confiantes. Até lhe sorriem. E os fedelhos, por sua vez, agarram-se ao pobre bobo, despenteiam-no, desfazem-lhe o laço da gravata, como se se tratasse dum espantalho público, enviado para os jardins pela Câmara Municipal com o intuito de divertir as crianças – e não dum homem verdadeiro com coração de carne e dor autêntica na alma.
Pois eu vi a multidão alarve achincalhar este homem – e não me revoltei.
Vi, “claramente visto”, um rapaz com cara de estupidez inchada pregar-lhe um pontapé nas abas – e não tirei as mãos dos bolsos.
Não protestei. E tu também não. Nem tu que és sócio da Liga dos Direitos do Homem. Nem mesmo tu, da Sociedade Protectora dos Animais. Ninguém protestou.
Sorrimos todos, pingamos todos, sofremos todos teoricamente, e passamos adiante, curvos de vergonha da nossa raça de dons-quixotes covardes e sem emenda.
Sim, e sem emenda, porque ainda ontem... ah! Ontem...
Digam-me uma coisa: porque não fui às ventas daquele miserável que, por mera reinação, derrubou, com uma palmada imprevista, a caixa de charutos cheia de sinas que um miúdo estava a tentar impingir aos transeuntes, ali na esquina da Avenida?
O catraio, sujo de miséria, ergueu a voz, a barafustar num choro fundo contra a injustiça do universo. Várias pessoas rodearam-no logo. Homens e mulheres. Damas de seios altos. Senhores de chapéus de chuva enrolados. E os tais eternos lívidos com as unhas enterradas na carne.
Mas não. Ainda não foi dessa vez que se ouviu o grito.
Só o choramingar vão do garoto a procurar reunir os papeluchos das sinas, dispersos pelo vento...

*
*   *         
Subi lentamente a Avenida e parei na ponte dum dos lagos, a olhar para os peixes. Em baixo, na água, a minha imagem...
Desfi-la com cuspo.
Há momentos em que os homens não têm direito às suas imagens!

(De O mundo dos outros, Portugália Ed.)



COMENTÁRIO


Poeta e ficcionista já falecido, José Gomes Ferreira é o escritor do homem social. Ele tem uma consciência social e uma atitude humana vigorosamente assumidas. Como filiado ao Partido Comunista e participante do Neorealismo portugueses, critica vigorosamente a sociedade burguesa à qual pertence, dentro dela própria, fazendo a sua desconstrução, a sua crítica e o desmascaramento das suas mazelas.
Em “A Reportagem do Medo” o autor discorre sobre fatos do cotidiano em uma cidade grande, no caso Lisboa. O narrador, inicia o relato numa posição privilegiada: do alto de uma janela do 2º andar de um prédio. Dali, observa a rua e tudo vê com aguçada consciência crítica e auto-crítica (notar que o narrador é impiedoso consigo próprio por se saber um omisso).
A narrativa tem um narrador homodiegético (narrador e personagem testemunha dos fatos narrados) que execra severamente a decadência dos valores sociais e humanos da sociedade burguesa sua contemporânea. A presença do narratário é marcante no texto: ouvintes, testemunhas dos fatos narrados, leitores virtuais da “reportagem”, trazidos à narrativa como testemunhas daquilo que decerto para eles não é novidade: a derrocada dos valores sociais dos habitantes da cidade.
O texto começa fazendo um paralelo entre duas realidades: Portugal do passado e Portugal do presente. Todavia, o olhar do narrador para o passado não significa uma valorização dos seus aspectos históricos, mas sim os que dizem respeito à mudança nas atitudes e nos comportamentos humanos, verificados no transcorrer do tempo, extinguindo o cavalheirismo, a gentileza, a boa educação, o respeito pelo outro e a probidade que existiam no Portugal do passado.  No lugar desses valores sociais e humanos, o que impera no Portugal contemporâneo ao autor são outros atributos bem opostos aos que eram cultivados outrora: a opressora covardia, a brutalidade e a irreverência dos mais fortes sobre os mais fracos (os oprimidos e impotentes) e os que, motivados pelo medo, se colocam como meros espectadores das injustiças e atos de selvageria que testemunha, sem esboçar o mínimo gesto para defender aqueles que sofrem a ação da força bruta. Estes são os eternos omissos, dentre os quais o narrador, ele próprio, se coloca.
  O contexto social é retratado como um conjunto de injustiças, violências, covardias, omissões e, especialmente, de intenso medo. É como se as pessoas houvessem perdido todo o sentido de atos como a coragem, a bondade, a solidariedade, a ética e a noção do respeito pelos seus semelhantes.
Trata-se, portanto, de um texto típico do Neo-Realismo, caracterizado pelos posicionamentos críticos do autor em relação à sociedade portuguesa do seu tempo.


1 de julho de 2011

Osman Lins: O Vitral.



Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos.
- Ora... Temos tantos... - respondera o homem. - Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!
A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. 
Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se.
- Está bem. Você não quer... (A voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto).
- Suas tolices, Matilde... Quando é isso?
Como se a idéia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:
- Em setembro - dissera. - No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu...
- Ah! Uma comemoração - interrompera o esposo. 
- Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós.
Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras purificara-se da ironia e as repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter.
Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, com réstias de sol no mosaico, no leito, nas paredes, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo o mais se tornava inexpressivo.
- Se você não quiser, eu não faço questão do retrato - disse ela. Foi tolice.
- O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.
- Não. Vou assim mesmo.Abriu a porta, saíram. 
Flutuavam raras nuvens brancas; as folhas das aglaias tinham um brilho fosco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.
Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou exultante que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.
- Manhã linda! - murmurou. - Hoje eu queria ser menina.
- Você é.
A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente. Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesma de tudo o que naquele instante sentia; e que sem ele o mundo e suas belezas não teriam sentido?
Estas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz
.- Aproveite - aconselhou ele. - Isso passa.- 
Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei.
As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.
- Não é possível guardar a mínima alegria - disse ele. - Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.
Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à infância e ao domingo que fluíam com força através delas. Atravessaram a rua, abriram um portão, desapareceram.
Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento me possua, me ilumine e desapareça” - pensava. – “Eu o vivi. Eu o estou vivendo".
Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral.

COMENTÁRIO

O Vitral, conto do livro “Os Gestos” de Osman Lins, é uma das mais sedutoras narrativas do escritor pernambucano, já falecido. Extremamente lírico, focaliza aspectos da interioridade humana que, de modo geral, escapam à percepção das pessoas, mas foram extraordinariamente percebidas pela especial sensibilidade deste autor. Para isso, Osman Lins lança mão da focalização interna da personagem feminina – Matilde – analisando seus pensamentos e os seus gestos, captando os significados e os sentimentos que estes exprimem.
O próprio perfil de Matilde, uma senhora de idade avançada, é traçado com pinceladas singelas que realçam sua alma poética e seu espírito romântico, bem esboçados em seu desejo de fazer uma foto mágica que operasse o milagre de captar, de “apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos”. 
Apesar da descrença do prosaico marido na possibilidade de se fixar sentimentos numa foto, Matilde vive a sua inefável fantasia, “sente-se imensamente feliz” em sua crença de “que a foto vai reter um pouco dessa felicidade”. 
Como ocorre em outros contos de “Os Gestos”, Osman Lins faz em “O Vitral” uma abordagem singela e profundamente lírica da condição humana, bem evidente na forma como revela os sentimentos, as relações afetivas, os desejos e as fragilidades das pessoas em sua caminhada existencial. 
A crença otimista de Matilde contrasta com o ceticismo, quase amargo do marido “circunspecto, mudo, alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente”.cumplicidade dele em relação às suas expectativas. Ao contrário disso, ela sentia “que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo”. Indagava-se sobre o papel daquele homem em sua história, refletindo. 
De braços dados com o marido, Matilde segue com os seus pensamentos invadidos por uma visão poética de tudo que a rodeia ou que vem do âmago de sua alma: “Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento me possua, me ilumine e desapareça” - pensava. – “Eu o vivi. Eu o estou vivendo". “Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral”.
O parágrafo final assinala um momento de grande poeticidade no qual Matilde entra em sintonia com a natureza e sente-se plena e iluminada pela luz do sol que a atravessa como se ela fosse um vitral.
Ao conto termina prodigalizando a beleza da celebração da vida que emana do interior de Matilde, da luminosidade esplendorosa do seu espírito sensível e aberto para a busca da felicidade, da plenitude.
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Zenóbia Collares Moreira