Quero lá saber de Lisboa de pedra histórica, com ortigas nos pátios, nespereiras nos balcões e palácios de bafio como museus de silêncio podre.
Nas cidades – e nos rios – interessa-me menos o leito pedregoso do que a corrente de pessoas vivas a rolarem Poe essas calçadas de manhã até à noite, cada qual pegada à sua sombra: esta a chorar porque lhe apareceu morto o canário na gaiola; aquele com olhos de letra a vencer amanhã; outra com o filho moribundo embrulhado no xaile roto; outra, ainda desventurosa porque lhe fugiu uma malha da meia, e todos com a morte marcada para depois de amanhã.
Descobrir as tragédias e as farsas dessa multidão diária que cobre de carne humana e de tumulto os rossios, as janelas, as igrejas, os elétricos, os cafés e as tabernas, eis uma das mais deleitosas ocupações do meu destino de espectador das ruas, espectador sui generis aliás, pois não me limito a assistir à vida do camarote do meu segundo andar, mas a saltar, de vez em quando, a pés juntos, para o palco e a representar também algumas “rábulas”.
Rábulas, por sinal, nem sempre felizes, como a que o Fado me distribuiu no último dramazinho colectivo levado inconscientemente à cena por todos nós (título: A parada dos lívidos ou Ó medricas, compra um cão) e em que interpretei, e continuo a interpretar com heroísmo p papel de 1º Pálido.
Por infortúnio, só muito tarde, talvez meses depois da primeira representação, tomei consciência da linda figura que andava a fazer por essas travessas e avenidas.
Ao princípio, confesso, o papel não me desagradou.
Nada de grave, aparentemente. Prudência, apenas. Um evitar mole de sarilhos. A aceitação quotidiana de pequenas injustiças à minha roda. (Oh, só as pequeninas injustiças sem importância. Lá as grandes, não. Nisso de grandes injustiças sou simplesmente feroz, acreditem.)
E assim, pouco a pouco, resvalei até este cômodo estado de admitir sem indignação todas as mesquinhas infâmias do dia-a-dia que, em tempos anteriores, segundo garantem os poucos cavaleiros andantes sobreviventes, provocavam, por via de regra, embates, socos e mãos de polícias a apartar.
Hoje não. Ainda esta manhã vi um brutamontes, com olheiras de tanguista e ombros de moço de recados, atirar um encontrão a uma velhota para lhe roubar o lugar no eléctrico, e ninguém soltou pio.
A pobre senhora, meio tonta, alheada do que se passava em redor, escancarou os olhos numa fixidez de assombro diante do burburinho do mundo.
Pois da plataforma apinhada de homens válidos, como eu, não saiu um único protesto.
Alguns empalideceram. Oh, sim, alguns ficaram brancos de cal e cravaram unhas enfurecidas nas palmas das mãos.
Mas o grito não se ouviu.
Bico calado. Ausência completa de dons-quixotes. Todos a pensarem nas vidinhas, nos destinos exíguos ao molde da alma de cada um.
Que lhes importavam o atropelo, a prepotência, o pontapé nas canelas do vizinho, o insulto, a calúnia, o apalpão impotente, o abuso do mais forte, as rasteiras e os pinhões nos velhos?
Alguns – coitados -, os derradeiros quixotes pusilânimes, empalideceram. Outros tornaram-se verdes, a expelir as clássicas labaredas de ira pelos olhos.
Mas todos acabaram por engolir o grito e passar adiante...
Porque os portugueses de hoje, infelizmente, passam sempre adiante.
Vejam, vejam: agora mesmo, no meio da rua, aquela mulher, esfericamente gorda, desatou a espancar o filho de 6 anos e olhos enormes do tamanho de todas as lágrimas dos homens.
Porquê? Ninguém percebeu.
Bateu-lhe, pronto. Talvez para se vingar de qualquer pensamento humilhante. Talvez – quem sabe? – apenas para desenvolver os músculos dos braços.
Bateu-lhe. Pregou-lhe uma coça. Fez a ginástica do desespero. Rasgou-lhe os lábios com unhas maternais. Humilhou-o diante do sol. Esbofeteou-o.
E eu como reagi?
Claro, o meu primeiro instinto foi este: dar um pulo, fincar-lhe as mãos no pescoço e intimá-la a pedir perdão ao filho, ali mesmo, de joelhos.
Mas com grande espanto meu – cheio de comícios por dentro e de impassibilidade por fora – prossegui friamente o meu caminho, a fumar um cigarro abstrato, com a voz de D. Quixote entalada na garganta.
Há dias, o mesmo vexame.
Uma multidão de palermas desnecessários escarnecia dum doido, e eu passei adiante, sem sequer esboçar a raiva de me insurgir.
Como de costume, tornei-me muito pequenino, meti-me dentro do meu coração parvo, e o pobre maluco lá continuou a deixar-se esquartejar pelas feras.
Vocês conhecem-no, com certeza.
É um homem alto e gordo, de cara redonda, cabeleira à poeta, olhos infantis, fraque sebento, que aos domingos aparece por essas encruzilhadas a dirigir, com as mãos e um apito, o trânsito dos carros.
A história da sua vida... até apetece fazer literatura. E, no entanto, pode relatar-se em meia dúzia de palavras irônicas.
Um dia, um automóvel qualquer atropelou-lhe o filho, e ele, muito naturalmente, endoideceu.
De facto, que queriam que ele fizesse senão endoidecer?
Em lugar de sofrer em voz alta, de representar mais uma vez a comédia da dor humana aos soluços sobre o cadáver do filho, numa tentativa inútil de ressurreição, pôs-se a rir de mansinho. E comprou um fraque. E deixou crescer o cabelo. E veio para a rua vestido de polícia sinaleiro voluntário. E, por fim, começou a freqüentar os jardins públicos para tomar conta dos garotelhos, defende-los dos automóveis e dançar, com grande agitação desarticulada, o giroflé-giroflá.
Nos primeiros tempos, as mães, mal o divisavam, advertiam os meninos por precaução:
-Ó José! Ó Raul! Ó António! Venham para o pé da mamã!
Mas agora já lhe entregam os filhos, confiantes. Até lhe sorriem. E os fedelhos, por sua vez, agarram-se ao pobre bobo, despenteiam-no, desfazem-lhe o laço da gravata, como se se tratasse dum espantalho público, enviado para os jardins pela Câmara Municipal com o intuito de divertir as crianças – e não dum homem verdadeiro com coração de carne e dor autêntica na alma.
Pois eu vi a multidão alarve achincalhar este homem – e não me revoltei.
Vi, “claramente visto”, um rapaz com cara de estupidez inchada pregar-lhe um pontapé nas abas – e não tirei as mãos dos bolsos.
Não protestei. E tu também não. Nem tu que és sócio da Liga dos Direitos do Homem. Nem mesmo tu, da Sociedade Protectora dos Animais. Ninguém protestou.
Sorrimos todos, pingamos todos, sofremos todos teoricamente, e passamos adiante, curvos de vergonha da nossa raça de dons-quixotes covardes e sem emenda.
Sim, e sem emenda, porque ainda ontem... ah! Ontem...
Digam-me uma coisa: porque não fui às ventas daquele miserável que, por mera reinação, derrubou, com uma palmada imprevista, a caixa de charutos cheia de sinas que um miúdo estava a tentar impingir aos transeuntes, ali na esquina da Avenida?
O catraio, sujo de miséria, ergueu a voz, a barafustar num choro fundo contra a injustiça do universo. Várias pessoas rodearam-no logo. Homens e mulheres. Damas de seios altos. Senhores de chapéus de chuva enrolados. E os tais eternos lívidos com as unhas enterradas na carne.
Mas não. Ainda não foi dessa vez que se ouviu o grito.
Só o choramingar vão do garoto a procurar reunir os papeluchos das sinas, dispersos pelo vento...
*
* *
Subi lentamente a Avenida e parei na ponte dum dos lagos, a olhar para os peixes. Em baixo, na água, a minha imagem...
Desfi-la com cuspo.
Há momentos em que os homens não têm direito às suas imagens!
(De O mundo dos outros, Portugália Ed.)
COMENTÁRIO
Poeta e ficcionista já falecido, José Gomes Ferreira é o escritor do homem social. Ele tem uma consciência social e uma atitude humana vigorosamente assumidas. Como filiado ao Partido Comunista e participante do Neorealismo portugueses, critica vigorosamente a sociedade burguesa à qual pertence, dentro dela própria, fazendo a sua desconstrução, a sua crítica e o desmascaramento das suas mazelas.
Em “A Reportagem do Medo” o autor discorre sobre fatos do cotidiano em uma cidade grande, no caso Lisboa. O narrador, inicia o relato numa posição privilegiada: do alto de uma janela do 2º andar de um prédio. Dali, observa a rua e tudo vê com aguçada consciência crítica e auto-crítica (notar que o narrador é impiedoso consigo próprio por se saber um omisso).
A narrativa tem um narrador homodiegético (narrador e personagem testemunha dos fatos narrados) que execra severamente a decadência dos valores sociais e humanos da sociedade burguesa sua contemporânea. A presença do narratário é marcante no texto: ouvintes, testemunhas dos fatos narrados, leitores virtuais da “reportagem”, trazidos à narrativa como testemunhas daquilo que decerto para eles não é novidade: a derrocada dos valores sociais dos habitantes da cidade.
O texto começa fazendo um paralelo entre duas realidades: Portugal do passado e Portugal do presente. Todavia, o olhar do narrador para o passado não significa uma valorização dos seus aspectos históricos, mas sim os que dizem respeito à mudança nas atitudes e nos comportamentos humanos, verificados no transcorrer do tempo, extinguindo o cavalheirismo, a gentileza, a boa educação, o respeito pelo outro e a probidade que existiam no Portugal do passado. No lugar desses valores sociais e humanos, o que impera no Portugal contemporâneo ao autor são outros atributos bem opostos aos que eram cultivados outrora: a opressora covardia, a brutalidade e a irreverência dos mais fortes sobre os mais fracos (os oprimidos e impotentes) e os que, motivados pelo medo, se colocam como meros espectadores das injustiças e atos de selvageria que testemunha, sem esboçar o mínimo gesto para defender aqueles que sofrem a ação da força bruta. Estes são os eternos omissos, dentre os quais o narrador, ele próprio, se coloca.
O contexto social é retratado como um conjunto de injustiças, violências, covardias, omissões e, especialmente, de intenso medo. É como se as pessoas houvessem perdido todo o sentido de atos como a coragem, a bondade, a solidariedade, a ética e a noção do respeito pelos seus semelhantes.
Trata-se, portanto, de um texto típico do Neo-Realismo, caracterizado pelos posicionamentos críticos do autor em relação à sociedade portuguesa do seu tempo.